ECOTEOLOGIA- PARTE 8-UNIDADE 3- 1. ESPIRITUALIDADE RESPONSÁVEL EM FACE À DEGRADAÇÃO DA NATUREZA

 


As experiências religiosas, em sua maioria, também colocam como elemento de sua fé em um Deus Criador. Acreditar em Deus providente e criador instaura uma espiritualidade que protege a vida e evita a sua destruição. Cuidar da natureza com a sua força e com os seres mais frágeis faz parte dos conteúdos da fé. Com isso, ter fé é ter, diante dos olhos, todos os tipos de cuidado para com a vida. Para o mundo cristão, o livro do Gênesis apresenta a criação de um modo muito evidente como obra divina: a criação do ser humano e a criação de todos os seres é uma obra boa e do bem (Gn 1,31).

 Tudo que existe é feito com amor e por amor. O que nasce do amor vem com a marca da semelhança de Deus. Quem cuida da pessoa humana e cuida de todos os seres está do lado da dignidade da vida. A criação é uma realidade histórica de relação com Deus, com a convivência entre seres humanos e com toda a terra. O pecado é a falta de cuidado extremos com estas três realidades. Não podemos criar conflitos, mas relações harmoniosas que visam proteger a vida. Segundo afirma a Laudato Sì, “[p]or isso, é significativo que a harmonia vivida por São Francisco de Assis com todas as criaturas tenha sido interpretada como a sanação de uma ruptura” (FRANCISCO, 2015, p. 45).

 IMPORTANTE

“É importante ler os textos bíblicos no seu contexto, com uma justa hermenêutica, e lembrar que nos convidam a ‘cultivar e guardar’ o jardim do mundo (cf. Gn 2, 15). Enquanto ‘cultivar’ quer dizer lavrar ou trabalhar um terreno, ‘guardar’ significa proteger, cuidar, preservar, velar. Isto implica uma relação de reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza. Cada comunidade pode tomar da bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, mas tem também o dever de a proteger e garantir a continuidade da sua fertilidade para as gerações futuras”. (FRANCISCO, 2015, p. 46)

Se podemos assumir que espiritualidade é a vida segundo o Espírito, podemos também afirmar que o ser humano deve respeitar as leis da natureza, os equilíbrios dos ecossistemas, a ordem natural de tudo, porque tudo tem um valor próprio. O Catecismo da Igreja Católica, no parágrafo 339, frisa que

 [c]ada criatura possui bondade e perfeição próprias. As diferentes criaturas, queridas em seu próprio ser, refletem, cada uma a seu modo, um raio da sabedoria e da bondade infinitas de Deus. Por isso o homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura, a fim de evitar o uso desordenado das coisas. (CIC, 2000, p. 9)

 A passagem bíblica que narra a história de Caim e Abel (Gn 4, 9-12ss) mostra que manter um relacionamento bom e sem conflito é uma defesa também de tudo o que existe. Se existe ódio tudo corre perigo. Se um relacionamento não é bom, a harmonia deixa de habitar a terra. A narrativa do dilúvio (Gn 6,13) alude que, se a humanidade é incapaz de viver em paz, a terra se enche de violência, então é preciso salvar as espécies para que a vida possa subsistir. Cuidar das espécies é sempre um novo início. Noé é um homem bom que enche a vida de esperança e reabilita todos os seres. Cada espécie pertence a todos.

 IMPORTANTE

“Os Salmos convidam, frequentemente, o ser humano a louvar a Deus criador: ‘Estendeu a terra sobre as águas, porque o seu amor é eterno’ (Sl 136, 6). E convidam também as outras criaturas a louvá-Lo: ‘Louvai-O, sol e lua; louvai-O, estrelas luminosas! Louvai-O, alturas dos céus e águas que estais acima dos céus! Louvem todos o nome do Senhor, porque Ele deu uma ordem e tudo foi criado’ (Sl 148, 3-5). Existimos não só pelo poder de Deus, mas também na sua presença e companhia. Por isso O adoramos. Os escritos dos profetas convidam a recuperar forças, nos momentos difíceis, contemplando a Deus poderoso que criou o universo. O poder infinito de Deus não nos leva a escapar da sua ternura paterna, porque n’Ele se conjugam o carinho e a força. Na verdade, toda a sã espiritualidade implica simultaneamente acolher o amor divino e adorar, com confiança, o Senhor pelo seu poder infinito.

Na Bíblia, o Deus que liberta e salva é o mesmo que criou o universo, e estes dois modos de agir divino estão íntima e inseparavelmente ligados: ‘Ah! Senhor Deus, foste Tu que fizeste o céu e a terra com o teu grande poder e o teu braço estendido! Para Ti, nada é impossível! [...] Tu fizeste sair do Egito o teu povo, Israel, com prodígios e milagres” (Jr 32, 17.21). “O Senhor é um Deus eterno, que criou os confins da terra. Não se cansa nem perde as forças. É insondável a sua sabedoria. Ele dá forças ao cansado e enche de vigor o fraco’ (Is 40, 28b- 29)”. (FRANCISCO, 2015, p. 49-50)

Não existe uma espiritualidade que releve o Deus providente e criador. Ele é o centro da reverência. Sem Deus vamos adorar outros poderes do mundo. O ser humano não é dono e dominador do mundo, mas um servo do Criador de todas as coisas. Dentro das estruturas de poder econômico do mundo, há o apelo de que é melhor aumentar o patrimônio do que o processo civilizatório. Por isso, a espiritualidade vem para criar e refazer o que está sendo desconstruído. A criação é um projeto de amor de Deus. À vista disso,

[a] criação pertence à ordem do amor. O amor de Deus é a razão fundamental de toda criação. “Tu amas tudo o que existe e não detestas nada do que fizeste; pois, se odiasses alguma coisa, não a terias criado” (Sb 11,24). Então cada criatura é objeto de ternura do Pai que lhe atribui um lugar no mundo. Até a vida efêmera do ser mais insignificante é objeto do seu amor e, naqueles poucos segundos de existência, Ele envolve-o com seu carinho. Dizia São Basílio Magno que o criador é também “a bondade sem cálculos” e Dante Aligheri falava do “amor que move o sol e as outras estrelas. Por isso, das obras criadas pode-se subir “à sua amorosa misericórdia”. (FRANCISCO, 2015, p. 51)

Quando tratamos de uma espiritualidade responsável estamos nos referindo na buscar por desenvolver todas as nossas potencialidades, sobretudo a nossa força interior, para cuidar dos limites do mundo exterior. Nenhuma espiritualidade é egoísta, pelo contrário, ela é relação, participação e comunhão. A espiritualidade acontece junto com o que acontece na vida como um todo, ela é responsável em abraçar o mundo e a história para salvar, sanar, cuidar, libertar, transformar e evitar qualquer tipo de destruição. Logo, a espiritualidade responsável é continuadora da ação criadora de Deus. Isso porque o

[...] Espírito de Deus encheu o universo de potencialidades que permitem que do próprio seio das coisas, possa brotar sempre algo de novo: “A natureza nada mais é do que a razão de certa arte – concretamente arte divina – inscrita nas coisas, pela qual as próprias coisas se movem para um fim determinado. Como se o mestre construtor de navios pudesse conceder à madeira a possibilidade de se mover a si mesma para tomar a forma da nave”. (FRANCISCO, 2015, p. 53)

Espiritualidade reforça a identidade e todos temos uma identidade pessoal que entra em diálogo com tudo e todos, sobretudo, com o próprio Deus. A espiritualidade qualifica a vida, traz interiorização e discernimento, capacidade de um pensamento seguro, criatividade e interpretação. A Laudato Sì reforça que “[a] novidade qualitativa, implicada no aparecimento de um ser pessoal dentro do universo material, pressupõe uma ação Espiritualidade reforça a identidade e todos temos uma identidade pessoal que entra em diálogo com tudo e todos, sobretudo, com o próprio Deus. A espiritualidade qualifica a vida, traz interiorização e discernimento, capacidade de um pensamento seguro, criatividade e interpretação. A Laudato Sì reforça que “[a] novidade qualitativa, implicada no aparecimento de um ser pessoal dentro do universo material, pressupõe uma ação direta de Deus, uma chamada peculiar à vida e à reação de um Tu com outro tu” (FRANCISCO, 2015, p. 53-54).

A espiritualidade nos remete a nossa natureza divina, somos feitos imagem e semelhança de Deus que nos colocou em comunhão com a grandiosidade dos detalhes da natureza onde nada é banal, nada é supérfluo. Por conta disso que “[t]odo o universo material é uma linguagem do amor de Deus, do seu carinho sem medida por nós” (FRANCISCO, 2015, p. 55).

IMPORTANTE

O Papa pondera que “Deus escreveu um livro estupendo, ‘cujas letras são representadas pela multidão de criaturas presentes no universo’. E justamente afirmaram os bispos do Canadá que nenhuma criatura fica fora desta manifestação de Deus: ‘Desde os panoramas mais amplos às formas de vida mais frágeis, a natureza é um manancial incessante de encanto e reverência. Trata-se duma contínua revelação do divino’. Os bispos do Japão, por sua vez, disseram algo muito sugestivo: ‘Sentir cada criatura que canta o hino da sua existência é viver jubilosamente no amor de Deus e na esperança’. Esta contemplação da criação permite- nos descobrir qualquer ensinamento que Deus nos quer transmitir através de cada coisa, porque, ‘para o crente, contemplar a criação significa também escutar uma mensagem, ouvir uma voz paradoxal e silenciosa’. Podemos afirmar que, ‘ao lado da revelação propriamente dita, contida nas Sagradas Escrituras, há uma manifestação divina no despontar do sol e no cair da noite’. Prestando atenção a esta manifestação, o ser humano aprende a reconhecer-se a si mesmo na relação com as outras criaturas: ‘Eu expresso-me exprimindo o mundo; exploro a minha sacralidade decifrando a do mundo’”. (FRANCISCO, 2015, p. 55-56)

A espiritualidade responsável sublinha, assim, que a natureza em sua totalidade é o lugar da manifestação e da presença de Deus. Os Bispos do Brasil afirmam que “[e]m cada criatura habita o seu Espírito vivificante, que nos chama a u relacionamento com Ele. A descoberta dessa presença estimula em nós o desenvolvimento das ‘virtudes ecológicas’ (CNBB, 1992, p. 53-54).

E a força virtuosa nos leva a considerar as criaturas como um bem que tem uma paternidade. Se tem um Pai, nós todos formamos uma família de consanguinidade criatural, isso nos leva a viver os valores da comunhão, respeito e amorosidade. Dessa forma, se o solo está doente, todos estamos doentes; se uma espécie é extinta ou sofre com a desenfreada caça predatória, todos estamos mutilados. Não é uma questão de divinizar a terra e os seres que a habitam, mas de protegê-la. Nenhum ser vivo pode ser tratado de modo irresponsável. Também não se iguala o ser humano como uma criatura qualquer.

IMPORTANTE

Papa Francisco nos lembra que “[n]ão pode ser autêntico um sentimento de união íntima com os outros seres da natureza, se ao mesmo tempo não houver no coração ternura, compaixão e preocupação pelos seres humanos. [...]. Não é por acaso que São Francisco, no cântico onde louva a Deus pelas criaturas, acrescenta o seguinte: ‘Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que perdoam por teu amor’. Tudo está interligado. Por isso, exige-se uma preocupação pelo meio ambiente, unida ao amor sincero pelos seres humanos e a um compromisso constante com os problemas da sociedade. Além disso, quando o coração está verdadeiramente aberto a uma comunhão universal, nada e ninguém fica excluído desta fraternidade. Portanto, é verdade também que a indiferença ou a crueldade com as outras criaturas deste mundo sempre acabam de alguma forma por repercutir-se no tratamento que reservamos aos outros seres humanos. O coração é um só, e a própria miséria que leva a maltratar um animal não tarda a manifestar-se na relação com as outras pessoas. Todo o encarniçamento contra qualquer criatura ‘é contrário à dignidade humana’. [...] Tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma das suas criaturas e que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe terra”. (FRANCISCO, 2015, p. 59-60)

A terra é nossa herança comum que beneficia a todos, sem exceção. Por isso, uma espiritualidade responsável tem que levar em conta os desfavorecidos, não se pode excluir ninguém dos benefícios da terra. Em virtude disso, os Bispos do Paraguai defendem que

 [c]ada camponês tem direito natural de possuir um lote razoável de terra, onde possa estabelecer o seu lar, trabalhar para a subsistência da sua família e gozar de segurança existencial. Este direito deve ser de tal forma garantido, que o seu exercício não seja ilusório, mas real. Isto significa que, além do título de propriedade, o camponês deve contar com meios de formação técnica, empréstimos, seguros e acesso ao mercado. (CONFERÊNCIA EPISCOPAL DO PARAGUAI, 1992, [n. p.])

O meio ambiente é o nosso bem coletivo, o nosso patrimônio, a nossa responsabilidade. Quem tem uma parte deste benefício tem que administrar em função do bem de todos.

Texto originalmente publicado pela USF- FREI VITORIO MAZZUCO FILHO




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