Morte e Vida Natalina


Mais um momento chega até os nossos olhos e agendas. Momento de viajar e gastar o corpo em ônibus, carros, enfim, em estradas e rumos. O mais interessante, nesta experiência de vai e vem, é que concluímos que o nosso verdadeiro e histórico lugar de apoio, origem e memória nunca é onde estamos (isto se evidencia na maioria das pessoas).

Estamos sempre fora de nosso início, daquilo que esperamos “visitar”, ou melhor, revisitar. Visitar a família ou a nossa casa de origem é uma maneira que encontramos, pedagogicamente, de nos tatearmos e nos acariciarmos. Já peguei tantos metrôs, aviões, destinos diversos, mas nenhum tem a lógica desta “viagem” de final de ano, um fenômeno que invade internamente feito enchente.
“Natal”, já falei tanto disso em artigos, palestras, textos e poesias, sempre tentando desvencilhar hábitos coletivizados, com uma pitada de criticidade frente ao valor singular desta época, porém, hoje aqui, diante destas palavras, calo como mãe diante de um leito do filho enfermo por uma doença misteriosa. Não sei o que dizer, não sei o que imaginar, apenas embalo-me no acontecimento, com um sentimento de cansaço. Tantas coisas fizemos, lutamos, brigamos, conseguimos, frustramo-nos, acreditamos, amamos e deletamos de nossas listas de prioridade neste período de 360 dias. O cenário da vida se equaciona num calendário? Não sei, pois estamos sempre muito ocupados para nisso pensar.
Sempre tive a imagem do natal como um grande enterro. Enterro de nossas vaidades – aquilo que tentamos sobrepor ao outro. Enterro de agendas e cronogramas, para que dali eu possa presenciar o broto autêntico da vida, sem jóias e relógios, apenas nua, medida sem vergonha, descaso de mentiras e domesticações. Enterro do que não vi, não degustei, não tateei e não cheirei. O natal para mim é ressurreição do eu mais primário, mas existente, escondido, fragilizado, anêmico, marginalizado, excluído, banido, subnutrido, esquecido.
Hoje galga em mim uma vontade de dormir na estrada, a caminho de algo que não encontrei e nem encontrarei. Quero fugir das luzes e buscar a escuridão da noite de natal. Talvez lá eu possa me encontrar, perdido num ventre de rotina que hoje se resume num plano universo (um só verso), por isso, bebida e comida, um estado de sobrevivência fatal e corriqueira.
Talvez o que chamam de "noite iluminada", seja no fundo o brilho que buscamos no silêncio contemplativo da escuridão, que é sinônimo de não-aparência, não-horizonte, apenas percepção de respeito e espreiteza. Neste sentimento iluminamos a nós mesmos, nossos eixos e centros, tão desbirutados pelas gigantescas demandas e estratégias sociais, profissionais, políticas, culturais e comportamentais em que nos deixamos reger diariamente.
A ética de nosso coração está no estômago de nossa faina histórica.
Neste ano vi tanta gente falar, planejar e contar carros, apartamentos, e-mails, maridos. Outros vi enlouquecer, dormir, enfartar, casar, fugir e romper com patrões e família. Natal é motivo de memória, é o parto do novo!

Esta memória faz-me voltar para a minha imagem. Confesso que envelheci, tenho fios brancos em minha barba, barba esta de tantos comentários e deslogios (falta de cuidado, assim dizem!), meu corpo a manjedoura das minhas angústias, medos, esperanças e projetos. Hoje me identifico com Jesus no horto e não aquela imagem do presépio: vivo, como folha verde na primavera. Talvez esta confusão de imagens e cenários, entrando num complexo quase que ilegível, seja o resultado da tão falada experiência religiosa - confundir imagens, rostos, anos e etapas. Hoje não sei se sou Filho envelhecido ou tornei-me Pai, terceira pessoa da trindade. Mas com inspiração nas cicatrrizes que carrego, descrevo balbuciando ao vento: quero ser Espírito para voar deste chão, quero vitalidade para percorrer desertos e jejuns, ou então, quero ser menino aquecido pelo bafo simples e real de um burro. Sem medo de bactérias, de compromissos, de nojeiras, de absurdos, de idiotices e/ou maluquices. Quero ser/estar entre o sono do sonho e o sonho do sono, aqueles de minha infância que eram levemente encerrados ao som profético e familiar de um passarinho a mergulhar no orvalho da manhã. Na cozinha nasce o cheiro do café e o som dos passos de minha vó, preparando o caixote de lenhas, frescas para o sacrifico do almoço. Doce abandono, curta viagem, enorme distância, parida memória.

De Fábio José Garcia Paes

Comentários

Unknown disse…
Frei Vitório!
O cenário da vida se equaciona num calendário? Não!!! Muito se equaciona nas amizades verdadeiras.
Hora de rever velhos amigos de Guaratinguetá.
abraços

Maria Helena e Joaquim