Dois textos para refletir

Quero dividir aqui, com todos os que acompanham o meu Blog, dois textos de meu amigo e terapeuta, Paulo Palladini. Um texto revela o seu olhar enquanto faz uma caminhada. Também tenho feito caminhadas diárias, terapêuticas e reveladoras. Andar afina o olhar e o espírito, além de prestar uma ajuda enorme ao corpo. Mais do que medicinal uma caminhada é janela aberta para os detalhes da existência. Palladini é um destes terapeutas que não faz de seu consultório um hospital, mas um templo. Nós precisamos assim, de pessoas que nos devolvam a lugares sagrados. O outro texto remete ao livro “Terapeutas do Deserto”, de Jean-Yves Leloup e Leonardo Boff. Terapeuta somos todos nós quando cuidamos da Vida, quando fazemos valer o coração e o sadio da existência. Vale a pena ler e refletir com ele! Partilho com vocês!

Caminhada

É começo do outono. A terra ainda está úmida das chuvas de verão. O ar já está mais frio. Os raios de sol chegam quentes. É uma clara manhã de sábado. Apesar de uma dor inoportuna no joelho direito, resolvo caminhar. Tomo a estrada. A vegetação é abundante: arbustos variados, flores do lado esquerdo; um bosque de eucaliptos do lado direito. Não ouço nenhum ruído humano, exceto aquele provocado pelos meus próprios passos e pela minha respiração. Mas um chiado contínuo me acompanha. Distingo nele alguns pios de pássaros, sons de grilos e cigarras, sons de vento nas folhas, que balançam. Um pequeno grilo salta ante minha aproximação. Passos- respiração. Abaixo-me para apanhar pinhas: três pinhas. Formas fugazes aparecem e somem em meio às folhas dos eucaliptos. Seu perfume invade minhas narinas; inspiro mais forte, faço uma respiração profunda. Como é bom! Sinto-me em paz comigo mesmo e com o universo. Nada sobra, nada falta. Tudo está em harmonia. Não há dor no meu joelho. Meus órgãos estão em silêncio. Nada necessito, nada desejo. Tudo é conforme. O perfume dos eucaliptos, ora misturado com o dos pinheiros, penetra pelas narinas, irradia-se. Imagens passam pelo meu cérebro. Os pensamentos são imagens subjetivas: uma conversa por celular com meu filho interrompida por causa da bateria... fragmentos de uma reunião sobre adolescentes dias atrás... o sorriso de minha mulher Ana... sua voz... galeria de imagens de vários pacientes, que atendi na semana

... o som do saxofone. Uma pequena pedra sob a sola do sapato faz tudo parar. e a atenção vai para ela. Sensação de choque sobe pela perna esquerda. Junto com um raio de sol por entre os troncos dos eucaliptos surge uma mancha vermelha. Tão rápida vem tão rápida vai. Paro diante de um tronco cortado; tem cerca de um metro de diâmetro. Observo sua superfície enegrecida, pergunto-me (mentalmente): porque uma árvore desse porte foi cortada. Vejo outras delas tombadas, menos imponentes. Restos de galhos ainda estão espalhados pelo chão. Agora tem um outro cheiro o ar: terra úmida. E tudo aparece marrom, as folhas estão secas e faz outro som, quando piso. Não mais arenoso, nem só de folhas; é mais compacto. Os raios que vêm dos pinheiros são diferentes, o verde está bem mais escuro. A estrada começa a fazer uma longa curva para a direita; não dá para ver muito mais adiante. Penso em voltar. Continuo andando. Vejo: a capa do livro que há pouco eu lia - As ilusões da liberdade - sobre a vida e a obra de Nina Rodrigues, trechos de um artigo sobre economia solidária, tipos gráficos aleatórios. O sol começa a arder na minha pele; levemente. As folhas das árvores balançam compassadas; o único movimento que percebo. Dou meia volta. Olho pra cima: duas volumosas nuvens, muito brancas, em alta velocidade, chocam-se, misturam-se, viram uma coisa só. Como é possível? Tapam o sol.
Leia pc.palladini.zip.net
Por Gustavo e Paulo Palladini Mococa-São Paulo 02 de maio de 2009 n° 296


Mestres terapeutas

Livros são sempre presentes maravilhosos. Pelo menos para mim. Tempos atrás ganhei de Ana, minha mulher, um desses de lavar a alma. Foi sugestão de Frei Vitório Mazzuco, que esteve em Mococa para um encontro da Ordem Terceira no Convento São José. Na época, ele era editor da Vozes, a grande editora sediada em Petrópolis; hoje é Vice-provincial da Ordem Franciscana. Viera falar de espiritualidade e, também, de psicologia. E de como esses campos se interpenetram. É disso que trata o livro "Terapeutas do Deserto", da aproximação das diversas tradições religiosas e sua integração com o conhecimento psicológico atual. Jean-Yves Leloup, um dos autores, chega a afirmar: “Não há oposição entre o conhecimento de si mesmo que a psicologia propõe e o conhecimento de si mesmo que a espiritualidade propõe”. O diálogo só pode ser fecundo. Leonardo Boff, co-autor do livro, fala de São Francisco.

Na verdade Terapeutas do Deserto é resultado de um seminário da Universidade Holística Internacional em Brasília, organizado em 1996 como parte do curso de formação em psicologia transpessoal e holística. Instigantes os dois teólogos desafiam nossas certezas no terreno da espiritualidade propondo novas questões. Jean-Yves aborda aspectos essenciais das tradições budista e taoista cotejando-as com a psicologia analítica de Jung e a psicanálise de Freud. Mostra como é enriquecedora a integração dos diferentes níveis da experiência humana. Dedica um capítulo à sombra, aquela parte de nós mesmos negada e rejeitada pela consciência, reprimida por inaceitável. Remonta a Heráclito, um filósofo pré-socrático, que dizia: cada coisa se transforma em seu contrário. Um desejo intenso de ser bom e fazer o bem pode atrair exatamente o seu oposto. Ou, então, após uma explosão de cólera, a pessoa pode sentir uma grande ternura.

Para Jean-Yves “aqueles que querem matar os diabinhos acabam por matar também o anjo”. A sombra, o lado negativo de cada um, não é para ser destruído, e sim integrado à personalidade do indivíduo. “Não há caminho para a luz que não faça a travessia da sombra”, conclui. Leonardo Boff relembra, a este respeito, que São Francisco se considerava um pecador mesquinho e vil; reconhecia sua sombra. Fazia das dimensões negativas caminhos de encontro com Deus. No capítulo sobre o discernimento Jean-Yves faz um alerta: “certas palavras que se atribuem a Deus vêm do mais profundo do homem”...”e quando lemos em um texto sagrado deve-se ler como uma palavra de Deus, mas não esquecer que este Deus nos fala através dos seres humanos, através da linguagem humana”. Esse modo relativo de olhar o absoluto conduz a uma atitude de equilíbrio e respeito, evitando os perigos do desprezo pelo outro, por um lado e da idolatria cega, por outro. Terapeutas do Deserto guia-nos por esta senda, a senda da fé preciosa.

Leia pc.palladini.zip.net
Paulo Palladini - Mococa-São Paulo 09 de maio de 2009 n° 297

Comentários

bianca maul disse…
Olá Frei Vitório
Você continua me emocionando com seus textos reais e humanos.
Ainda adoro ler e ouvir seus textos.
Com carinho, sua ex-aluna e amiga que lhe admira muito.
Bianca Maul-Petrópolis-RJ