Ecoteologia Parte 2- Inter-relações e contribuições Ecoambientais das religiões

 


2. RELIGIÕES DO ORIENTE E O MEIO-AMBIENTE – O MUNDO 
COMO ÍCONE DE DEUS

Dando continuidade à nossa reflexão, queremos sintetizar o pensamento da Espiritualidade Oriental Antiga a respeito da natureza e, assim, ver o mundo como um sacramento a ser contemplado. Seria uma ousadia chamar os Padres da Igreja primitiva oriental (não estamos falando de sacerdotes, mas de pais do pensamento primitivo) de ecologistas, pois eles não fazem uma admiração estética da natureza, mas querem mostrar outra realidade mais profunda que inspira; o mundo tem que ser o lugar de constante recordação de Deus e essa afirmação é uma categoria mística essencial. São Basílio Magno dizia que “o criado é impregnado de Beleza”, um imenso ícone da Beleza de Deus, e a natureza é sinal dessa realidade, dessa percepção profunda.

 2.1. A VISÃO OTIMISTA DO MUNDO

A prece na tradição cristã antiga passa também pela contemplação da natureza, não apenas como um sentimento romântico; trata-se de fato de uma paixão. É saber ver. Diz São Basílio: “O Senhor não serve de olhos para contemplar a Beleza da sua Obra, mas nós precisamos de olhos para admirá-la. A beleza é a base da obra criadora”. Para os Padres Gregos a criação é Deus ornando o caos. O cosmo é encontro da ordem, ornamento e harmonia. Deus cria dando forma ao informe. O mundo é um resultado de alguém que olha segundo o modelo de ser, fazer, criar. O Senhor cria, cuida e conduz. Idolatria seria afastar-se de Deus, seria esquecer o mundo em sua multiplicidade, ordem e ritmo. O mundo deve ser a recordação constante desse contato com o divino. As coisas criadas são feitas para evocar isso. Elas são um intercâmbio: humano-natureza-comunhão com o Sagrado. O ser humano se torna pessoa enquanto é relação com a totalidade, e se tem relação com as coisas deve ter também uma íntima relação com Absoluto.

Essa relação humano-mundo e humano-Deus é bastante nutrida pela natureza, porque o mundo representa um espetáculo, um convite do Senhor para colocar o Humano em comunhão com Ele ao ver sua obra. Aqui está o ponto central da teologia e espiritualidade antigas no que se refere ao criado: a sacralidade do mundo, a contemplação religiosa da criação. A natureza é um livro aberto para conhecer Deus e o seu plano de Amor.

O ato criativo de Deus é contínuo, mas o ponto forte é que Deus cria encarnando-se. O Verbo se fez carne e impregnou a paisagem humana da Boa Nova. É preciso ver com alegria o Verbo em todas as coisas, pois Ele completa o plano salvífico global do Pai, por isso é preciso reconhecer e agradecer. O Verbo é o sentido eucarístico do mundo.

Na Espiritualidade Patrística a visão otimista do mundo tem uma justificação soteriológica: a matéria toda é assumida pelo Verbo para operar de um modo completo a nossa salvação: “Não cessarei de levar minha veneração à Matéria através da qual se operou a minha salvação”, escreveu São João Damasceno (MAZZUCO FILHO, 1992, p. 375).

 2.2. A VISÃO SACRAMENTAL DO MUNDO

Os Padres se voltam à Bíblia para sustentar a sua visão otimista sacramental do mundo, e precisamente a Gn 1, 10: “E Deus viu que era bom”. Os exegetas da patrística interpretam esse trecho lembrando que Bom se refere à utilidade das coisas para o ser humano, enquanto o Belo exprime a alegria fecunda e emergente da própria criação. Os Padres citam frequentemente essa expressão bíblica para afirmar a bondade e a beleza do universo. A bondade e a beleza do mundo derivam da sabedoria de Deus, criador de tudo aquilo que é. Todo criado é revestido dessa realidade, afirma São Basílio: “assim como a água impregna de sua vitalidade uma planta, dando-lhe a possibilidade de revestir-se de cores” (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 376). Os Padres tendem a ver o mundo como uma “teofania” de Deus, uma espécie de sacramento de sua Presença e da sua Beleza. Trata-se de uma verdadeira e própria “cosmologia sacramental”. Todo o mundo é sagrado, porque manifesta o início da encarnação dos Logos Divinos:

O Mundo é uma coisa boa e tudo nele está colocado em ordem com sabedoria e arte. Tudo, portanto, é obra do Verbo vivente e substancial, porque o Verbo é Deus. É dotado de livre vontade porque é vivente, tem o poder de fazer tudo o que escolhe para realizar, e escolhe somente o que é bom e sábio e tudo o que traz o sinal da perfeição. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 376)

O grande mestre do “Sacramentalismo cosmológico” é Orígenes. Para ele o mundo é um mistério, isto é, um sacramento. Mistério é Deus mesmo e tudo o que saiu dele através dos Logos. O mundo é feito de sinais significantes que precisam ser lidos para se chegar àquEle que significam. É preciso ter percepção do mistério. “Recordamos que tudo é pleno de mistério”, diz Orígenes, e escreve também: “Tudo o que se alcança, se alcança através do mistério”, pois somente pela graça do Espírito é que nós podemos fazer essa leitura (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 376).

Máximo, o confessor, diz: “O fogo inefável e prodigioso escondido na essência das coisas como esteve na sarça ardente, é o fogo do Amor Divino e o esplendor fulgurante da sua Beleza dentro de todas as coisas”. Esse fogo Divino é revelado somente pelo Fogo do Espírito, que leva o mundo a ser contemplado como o grande ícone da Beleza de Deus (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 376).

 2.3. A CONTEMPLAÇÃO DA BELEZA DO MUNDO

O Ser humano, frente à beleza do mundo, não pode permanecer apenas movido por um simples sentimento romântico, mas tem que ser movido das considerações provenientes da fé. É São Basílio que afirma:

"E o Senhor viu que era bom”. A Sagrada Escritura não entende nos dizer que o mar é visto por Deus no seu aspecto de beleza estética… porque o Senhor não se serve dos olhos para admirar a beleza das suas obras. Ele comtempla os seres através da inefável sabedoria. Está certo que não se pode negar o agradável espetáculo que oferece o mar azul quando nele reina uma profunda calma… Mas não é esta a razão pela qual, segundo a Sagrada Escritura, o mar aparece belo e encantador aos olhos de Deus. A beleza deriva do fato que ela é a base da obra criadora de Deus. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 378)

A contemplação da natureza é um grande meio que nos ajuda a alimentar-nos da recordação de Deus. Essa é uma das expressões típicas da espiritualidade de São Basílio. Escreve Spidlik:

No Pensamento cósmico de São Basílio, o mundo inteiro na sua multiplicidade, no seu ritmo e na sua maravilhosa ordem, não tem outra finalidade a não ser uma recordação de nossos contatos com Deus. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 379)

Para o Bispo de Cesareia, o próprio do ser humano é conservar constantemente a memória do Senhor: “Quero deixar em ti uma profunda admiração da natureza, a fim de que em todo o lugar, contemplando as plantas e flores, sejas preso de uma viva recordação do Criador” (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 379).

Trata-se literalmente de apaixonar-se frente às maravilhas da natureza, porque o mundo representa um espetáculo frente ao qual tudo o mais empalidece. De fato, argumenta São Basílio, os apaixonados pelo teatro ou pela corrida de cavalos são tomados pela paixão, quanto mais devemos nós permanecer admirados e relembrados de que:

O Senhor, o grande Autor e Artista das maravilhas do mundo, nos convida a assistir ao espetáculo de suas obras. Evitaremos nós, então, de contemplar, hesitaremos nós em escutar os ensinamentos do Espírito? Não devemos contemplar o grande laboratório da criação divina volvendo o nosso olhar sobre a harmonia do universo, sobre o céu, terra e ar? (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 380)

 A tradição espiritual do Oriente situa, em uma ordem lógica, a contemplação da natureza depois da purificação do coração e antes da contemplação da Trindade. A contemplação da natureza é chamada Theoria fysikè. Trata-se da contemplação religiosa do mundo feita com sentidos espirituais elevados da graça para colher o “Logos” divino em cada ser, ou seja, a bondade de Deus Criador que forjou todas as coisas por meio do seu “Logos”.

Somente assim se supera a exterioridade das coisas e se pode captar e sentir a sua verdadeira linguagem. Trata-se da verdadeira ciência das coisas, nas quais o indivíduo humano purificado e tendo conquistado o coração puro, pode ver dentro das coisas um plano divino e descobrir a Providência Divina feita toda ela de Amor e Sabedoria. Então, a natureza se torna verdadeiramente um livro aberto para conhecer Deus e seu plano de Amor. Máximo, o Confessor, retomando alguns conceitos bíblicos, escreve:

Não conhecemos Deus na sua essência, mas das suas grandes obras e da sua Providência nos seres. Através dos quais, como num espelho, nós compreendemos a sua infinita bondade, sabedoria e potência. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 380)

Para São Basílio, tudo é uma concretização da Palavra do Criador. Todo ser deve, portanto, falar, narrar a glória do Senhor. O Espírito a perfecciona; assim como o esplendor pertence ao sol, assim a glória do Senhor pertence ao Espírito. A Beleza é relativa, é enviada à Beleza Suprema, por isso é capaz de suscitar a alma a “exultar no Senhor”, porque ela nos lembra que somente o Senhor possui “uma tal Beleza, uma tal bondade e uma tal sabedoria” (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 380). A alma exulta porque o Senhor é Grande e Belo. Toda a verdadeira Beleza, portanto, sendo um reflexo da Beleza Divina, não distrai o humano de Deus, não o perturba, porque lhe dá um aspecto feliz e doce que lhe torna sereno e jovial.

A ligação alegre do humano com o cosmo aparece frequentemente em vários autores.

Máximo, o Confessor sintetiza: “Tudo o que foi criado por Deus nas diversas naturezas concorre junto com o humano como numa cozedura, para formar nele uma perfeição única, como uma harmonia formada de diversos sons” (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 380). Nemésio, bispo de Emesa, em 400 d.C. escrevia que o humano partilha a própria natureza com todas as categorias dos seres e que constitui a coligação ideal com cada um desses seres. O humano é uma comunhão com todas as coisas e participa vitalmente de tudo.

Clemente de Alexandria explicava que o Verbo fez do humano um instrumento composto da harmonia de todo o universo para fazer um hino harmonioso a Deus. Assim, o humano não é um tirano frente à natureza, mas é integrado harmoniosamente nela, nascendo então uma simpatia que liga o humano ao cosmo no amor e na amizade. São Basílio Magno exprime este pensamento de forma geral:

O estar junto ao cosmo, do qual o humano faz parte integrante, mesmo que seja composto de partes desiguais, pelo Criador foi estreitamente unido como uma indissolúvel amizade e uma comunhão harmoniosa que os seres, os mais distantes uns dos outros, são entre eles unidos na mesma simpatia. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 381)

Por esse motivo que Máximo, o Confessor, tem uma concepção cósmica do amor. Para ele, graças ao amor se cumpre uma síntese total da humanidade e do mundo em uma idêntica unidade. Não são dois amores, um pelo mundo e outro para Deus, mas dois aspectos do único e indivisível amor com que se ama o mundo e por meio dele: Deus!

Por isso o humano, feito voz das criaturas, cria um Sacerdócio Cósmico para louvar o Senhor por todas as criaturas. Diz o Confessor: “O universo é uma Igreja Cósmica, da qual a nave é o mundo sensível enquanto o coro é o mundo espiritual” (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 381). O ser humano é convidado a entrar nessa catedral do universo para descobrir, sob a direção do Logos, a verdadeira razão dos seres:

A alma se refugia na contemplação espiritual da natureza como no salão de uma igreja, num asilo de paz… Ela entra junto com o Logos e é conduzida por ele, vosso verdadeiro pontífice. Ali, como uma leitura divina, aprende a conhecer os conteúdos significantes dos seres. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 381) 

Aqui o humano se torna o verdadeiro sacerdote do mundo, que oferece a natureza a Deus com o seu próprio coração como sobre o altar, e faz íntimo do seu espírito o “Santos dos Santos”, penetrando até o Grande Silêncio de Deus. O ser humano, mesmo sendo microcosmo, não está em meio ao universo com um sentimento titânico de superioridade no confronto com a natureza; consciente de seu ser efêmero se põe a serviço do cosmos. Inspirado e lírico, diz Máximo, o Confessor:

E nós mesmos, por força do imperioso decurso da nossa natureza presente, agora gerados e dados à luz como todos os outros animais terrestres, depois tornados crianças e enfim invadidos pela juventude até chegarmos às rugas da velhice, como uma flor que dura um breve momento para depois morrer e passar para outra vida, na verdade merecemos chamar-nos um jogo de Deus. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 381)

É o sentimento cósmico, a existência considerada como um ato litúrgico, como uma adoração, um culto celebrativo, uma dança sacra e estética.

 2.4. MAIS ALGUMAS IDEIAS SOBRE A CONTEMPLAÇÃO DA

NATUREZA NOS MÍSTICOS ORIENTAIS

A contemplação da natureza não é um fenômeno esotérico reservado a poucos intelectuais de matriz cultural grega. Existem muitos exemplos, no mundo oriental grego e eslavo, de almas culturalmente pobres, mas ricas de interioridades. Conforme Isaac, o Siro, de Nínive, que viveu no século IV, sente-se totalmente solidário com todas as criaturas, a ponto de crer não poder salvar-se a não ser em total comunhão com o todo criado. A pergunta que se põe: o que significa um coração puro? Assim responde:

É um coração que sofre com todas as criaturas. E o que significa um coração que se compadece? É um coração que se inflama de caridade, pela criação inteira, pelo ser humano, pelos pássaros, pelos animais, pelos demônios, por todas as criaturas. Quando pensa nestas criaturas, quando as vê, os seus olhos não podem a não ser encher-se de lágrimas. É assim tão grande e violenta paixão que seu coração se despedaça quando vê o mal e o sofrimento das criaturas mais humildes. Por isso não cessa de rezar entre lágrimas em todos os momentos pelos inimigos da verdade e por todos aqueles que lhe tenham feito algum mal, para que sejam protegidos e perdoados. Ele reza também pelas serpentes, movido de piedade infinita, que despertar no coração de todos aqueles que se assemelham a Deus. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 382)

Essas palavras apaixonas de Isaac são uma relação do humano reconciliado com o universo inteiro e por isso considera todas as criaturas suas irmãs e se sente solidário a elas. Isso trouxe um grande influxo no cristianismo oriental, seja grego ou eslavo. No Romance Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, Grigorij, o servo de Ivan Karamazov, aplica-se obstinadamente às pregações contidas no livro Os sermões do nosso padre Isaac, Sírio. O pensamento do santo vem produzido nas palavras do Staretz Zosima: 

Amai toda a criação divina, juntamente com cada grão de areia. Amai toda a pequena relva, todo raio de sol! Amai os animais, amai as plantas, amai, todas as coisas! Se amardes todas as coisas colhei nelas o mistério de Deus. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 382)

Temos também Silvano do Monte Athos, falecido em 1938, portanto bem vizinho ao nosso tempo, destacando a sua doutrina e escritos, pelo testemunho de seu discípulo Sofrônio:

A Alma de Staretz exultava de alegria diante da beleza do mundo visível. Sob este aspecto era como um menino: todas as coisas o maravilhavam! (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 382)

Nos seus ensinamentos, Silvano dá também a razão pela qual o humano deve permanecer estático frente à beleza da natureza:

O humano que perdeu a graça não sabe mais perceber a beleza do mundo e nada mais o encanta; e não lhe toca mais nem a inexprimível beleza da criação de Deus. Eu sei quando a graça do Senhor está com o humano, tudo o que existe dá à sua alma um inconcebível maravilhamento, e contemplando a beleza visível a sua alma dá conta da incrível presença de Deus em todas as coisas. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 382)

Enquanto observava as nuvens moverem-se no céu da Grécia, disse:

Que beleza criou Deus em sua glória, para o bem do povo, para que o povo glorifique com alegria seu criador […] Ó Rainha dos céus! Fazei com que o povo seja digno de ver a glória do seu Senhor! (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 382).

Para um companheiro de estrada, que com um bastão rompia as folhas dos arbustos à beira do caminho, dizia:

A folha era verde sobre a arvore e tu a estraçalhaste sem necessidade. É verdade que não é um pecado, mas o coração que aprendeu a amar se reconcilia com todas as criaturas, sobretudo com as mais pequeninas (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 382).

A sua piedade para com os animais era comovente. Diz seu discípulo:

Lendo os escritos do Staretz, é muito bom pararmos sobre seus pensamentos e seus sentimentos para com os animais. Não podemos experimentar a paixão que ele provava por cada criatura, e isto podemos sentir relendo o passo que dá ao deplorar a sua crueldade por ter matado uma mosca, ou por ter jogado água quente num morcego que se instalou no seu depósito; podemos compreender a sua compaixão por cada criatura que sofre. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 382).

Naturalmente, nesses casos não se trata de um amor pelos animais que substituiu o amor pela humanidade, como muitas vezes pode acontecer. Ele deplora o amor exagerado pelos animais que o amor pelos humanos e por Deus, último termo de todo amor pelas criaturas. O amor pelas criaturas deve nascer da graça, “A sua compaixão pelas criaturas não era um fenômeno patológico, mas sua expressão de uma grandeza de alma sobrenatural e de sua bondade derivada da graça” (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 382).

Temos também São Serafim de Sarov (1759-1833). Ele é conhecido como o “São Francisco do mundo russo”. Esse santo, que viveu grande parte de sua vida em contemplação dentro das impressionantes florestas russas, conseguia transfigurar o mundo em uma contínua oferenda para o Criador. Pela oração contínua aprendeu a conhecer a linguagem da criação, a escutar o louvor das criaturas e a compreender como é possível dialogar com elas. Uma testemunha ocular relata:

À meia noite, ursos e lobos, lebres e raposas circulavam o êremo de Serafim, junto a insetos e répteis de todos os tipos. Terminada a prece… O asceta sai da cela e começava a matar-lhe a fome dividindo com eles o seu pão seco. Um grande urso gozava de particular amizade com o santo homem… O que tocava a todos era a alegria que o Pai Serafim irradiava naquela ocasião. Sorridente, mandava o urso pegar coisa, e este retornava pela rampa trazendo um favo de mel que o anacoreta oferecia gentilmente a seus hóspedes. Mais tarde representações mais comuns de Serafim serão aquelas que o apresentavam sentado à sombra de um pinheiro enquanto dá um pedaço de pão a um urso. (apud MAZZUCO FILHO, 1992, p. 382)


Mesmo após a revolução russa, a caça ao urso é proibida na floresta em que viveu São Serafim, o “semelhantíssimo a Cristo”, como era chamado na tradição póstuma. Concluindo esta parte, aprendemos com os místicos orientais o amor pela natureza, uma natureza que precisa ser percebida com a alma. A alma é grande porque Deus a fez participar dessa beleza. Tudo é grande e belo, mas deve ser integrado no humano para que ele seja a Voz e a Consciência das criaturas.

Aprendemos com eles a Fraternidade Universal, que não exclui o mundo das coisas: a Fraternidade Universal deve respirar com o pulmão do universo! Que possamos rezar como Padres Orientais: “Graças, Senhor, porque somos também a concretização do seu Logos”. Fazemos parte da sinfonia de Deus, por isso não podemos desafinar, conquistemos a nossa harmonia! O mundo precisa demais de quem diz: graças ao Criador!

Diante da imensidão das obras não podemos nos calar. Que nossa presença na natureza seja de agradecimento, reconhecimento, reverência e de restituição: vamos dar a Deus o que lhe pertence!

 3. RELIGIÕES MONOTEÍSTAS ABRAÂMICAS E A CRIAÇÃO COMO CONCEITO TEOLÓGICO

A beleza da criação nas religiões monoteístas abraâmicas – Judaísmo, Cristianismo e Islamismo – é a revelação de que todo ser criado é um espelho do Deus Criador. Ele cria o mundo e vai aperfeiçoando, mas conta com o ser humano para dar continuidade a sua obra para assim levar ao acabamento a perfeição do Criador. A força do conceito de criação passa de geração em geração e faz surgir os efeitos que a formação no mundo da crença causa nas concepções de cada indivíduo: o ser humano não surgiu do nada; o sentido da sua vida é que vem de um Criador que dá origem à vida, é uma questão de fé. A vida só tem sentido pelo fato de termos sido criados por um Deus, e Ele preenche toda a realidade.


O mundo foi criado a partir de um propósito do Criador para ser um lugar de acolhida da energia e da luz que vem do divino. “E Deus disse: Faça-se a luz! E a luz se fez. Deus viu que a luz era boa” (Gn 1,3). Deus prepara as criaturas e vai dispor o seu povo para que através, de sua luz, ilumine o mundo inteiro. Deus quis ter uma morada física sobre a Terra; faz parte do seu projeto ser encontrado também no mundo físico. O mundo físico não é contrário ao espírito, mas é o lugar da revelação da bondade infinita do Criador, que conta com o ser humano para preparar a sua morada neste mundo, como diz o Salmo 115,16: “Os céus são os céus do Senhor, mas a terra ele deu aos filhos dos homens”. Deus desce ao plano terreno para que o ser humano suba espiritualmente e seja uma ponte de ligação entre a terra e o infinito.

 Há uma mensagem fundamental a ser passada: o mundo é uma criação do Deus Yahveh e a partir das ordenanças (Torá) deste Deus a vida alcança o seu verdadeiro sentido […] É importante destacar o lugar adequado dos humanos dentro de toda a casa da criação, levando a sério que o relato não culmina na criação dos seres humanos, mas no shabbat da criação e de Deus (Gn 2,1-3). As atribuições de domínio dos humanos na criação (Gn 1,28) devem ser relativizadas em favor de uma leitura que destaca a tarefa de trabalho e cuidado na criação (Gn 2,15), bem como a relação intrínseca entre o ser humano (adam) e a mãe terra (adamah). (REIMER, 2006, p. 119)

 A Sagrada Escritura é uma referência quanto à relação com a questão ambiental, pois faz muitas referências à terra, ao mundo e a todos os seres criados. As religiões do Livro mostram a criação como a ordem no caos. O ser humano não é dono e dominador da natureza, mas sim aquele que administra uma obra que vem de  Alguém maior do que ele. A criação é um organismo vivente que interage com o ser humano, dá a ele sustente e abrigo. No dilúvio é preciso salvar e cuidar das espécies para que a vida subsista. No Êxodo, as pragas, o mar, as rochas, o deserto, a água, fogo e nuvem fazem parte da caminhada do povo como guia e direção. A montanha é o lugar da lei, pactos e alianças e de grandes ensinamentos para que a vida não seja destruída.

Os pobres de Israel são pobres porque não herdam a terra. O não herdar a terra em Israel os faz pobres e vulneráveis. A terra é, então, sinal sensível do dom de Deus, da realização de suas promessas, e quem não a tem, nos códigos legais, torna-se destinatário da atenção de Deus e, portanto, do homem justo. Mas também a terra deve descansar. O jubileu é também para ela. É imperioso permitir que ela se recomponha, regenere-se. Não se trata de uma exploração indiscriminada, mas de uma relação justa e equilibrada. (FRANKY; AGUIRRE, 2016, p. 127)

O Islamismo traz em seus grandes ensinamentos a verdade que Deus criou seres humanos para cuidarem da sua obra. A criação não pertence aos seres humanos, que são apenas os guardiães: “O mundo é verde e bonito e Alá te nomeou seu tutor”, eis as palavras e Maomé. No que se refere à criação:

O conceito central do Islamismo é a unidade. Alá é a unidade e sua unidade reflete-se na unidade da humanidade e da natureza. Portanto, devemos manter a integridade da Terra, sua flora, sua fauna em todo o meio ambiente. Nossa responsabilidade é manter o equilíbrio e a harmonia na criação de Deus. Eles foram desenvolvidos para orientar uma concepção e um estilo de vida, a declaração de fé islâmica e a ecologia. O Islamismo ensina que algum dia seremos julgados por Deus pela forma como temos cumprido com nossas responsabilidades, seguindo as orientações dessa religião. Será que fomos bons administradores, será que mantivemos a natureza em harmonia? No Alcorão diz-se que Alá nos convida a nos deliciar dos frutos da terra, porque Alá não ama os esbanjadores. Todos os princípios traduziram-se em instruções e práticas a respeito de como viver, princípios que foram consagrados nas leis do islamismo. Por exemplo, a lei islâmica protege os animais contra a crueldade, conserva os bosques e limita o crescimento das cidades. (FRANKY; AGUIRRE, 2016, p. 128-129)

 O Cristianismo insiste na responsabilidade que a humanidade tem em cuidar da criação, mas também aponta a falta de cuidado. Há grandes ensinamentos à luz da crise ambiental, e o Cristianismo coloca em seus documentos apelos para mudança no estilo de vida. Natureza e criação fazem parte do Credo: “Creio em Deus Pai, todo poderoso, criador do céu e da terra”, portanto, faz parte da fé. Causar dano à criação deveria levar ao arrependimento capaz de pedir perdão, para chegar à conversão e amor a todas a criaturas. O cristianismo elabora uma nova espiritualidade:

Como em outros momentos da história humana, há um movimento de retorno às fontes da espiritualidade, que dessa vez ocorre em meio às tensões próprias da época e das novas fronteiras interculturais, inter-religiosas e interdisciplinares, que vão talhando a fisionomia da atual conjuntura planetária. Nesse cenário, constata-se que a espiritualidade não é passiva nem imutável. A espiritualidade move-se, caminha, indaga, explora, indica. É a própria vida que aspira sempre transcender, realizar-se, plenificar-se. A crise ecológica interpela as diversas maneiras de conceber-se a espiritualidade e gera uma nova espiritualidade. Existe uma aposta por uma espiritualidade que responda ao que acontece no mundo de hoje. (FRANKY; AGUIRRE, 2016, p. 133)

 

 Texto originalmente publicado pela USF- FREI VITORIO MAZZUCO FILHO



 

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