ECOTEOLOGIA 1

 



INTRODUÇÃO:

A dimensão religiosa da existência nos leva ao centro da existência sem perder o seu eixo fundamental e necessário: na vida tudo está ligado, religado, interligado e numa conexão profunda com o Ser original e originante que faz a vida acontecer em sua plenitude. Tudo o que se move é movido por uma força maior. Todas as religiões procuram explicar o fenômeno das intervenções de Deus na história, e de um modo especial veem a criação como o espelho mais transparente que revela o amor e o bem. Deus e o seu grande amor por todo o criado é a manifestação mais evidente de que somos cuidados por um Ser Superior que se dá através de suas obras.

No primeiro item desta unidade vamos mostrar, sob o olhar da transcendência, o que a espiritualidade, a religião e a teologia espiritual podem fundamentar quanto a relação que existe entre a experiência religiosa e a questão ambiental. Desde as religiões mais primitivas com a sua expressiva riqueza de ritos e cultos, a prioridade sempre foi destacar elementos da natureza para fazer a relação entre céu e terra. Em tudo uma manifestação do sagrado em momentos, elementos, tempo e espaço para o encontro com a divindade.

No segundo item a cultura religiosa do oriente e o meio ambiente. A natureza não é vista apenas na perspectiva da matéria, mas sob o olhar contemplativo. Contemplar é fazer de cada lugar um templo, estar junto com o espaço sagrado; por isso o mundo é visto como um ícone de Deus. Há uma alegre visão de mundo porque a matéria é sagrada, e a natureza é um livro aberto para conhecer o modo como Deus ama.

No terceiro item queremos mostrar que a criação em si comporta um conceito teológico: o sentido da vida vem do Criador que dá origem a vida e isto é uma questão que está na experiência de fé. O Criador quis ter uma morada física sobre a terra, faz parte de seu projeto ser encontrado no mundo de todas as coisas.

No item quarto destacamos o compromisso das igrejas cristãs com a questão ambiental. Não basta apenas celebrar, é preciso cuidar. É preciso tratar, discutir e denunciar de um modo profético a degradação ambiental, mudar o estilo de vida, de produção e de consumo. A maior parte dos habitantes da terra declara-se pertencente a uma tradição religiosa, mas do que adianta isso se os que creem e as religiões não se unirem para o cuidado da natureza?

1. INTER-RELAÇÕES E CONTRIBUIÇÕES ECOAMBIENTAIS DAS RELIGIÕES

Religião, evolução e espiritualidade estão presentes na criação e têm grande importância para elucidar o sentido da vida e a verdade de todos os seres. Desde as experiências mais primitivas e tribais do ser humano, o natural e o sobrenatural se encontram na beleza dos ritos. Do Oriente ao Ocidente, a questão ambiental não passa despercebida nos caminhos de crença e fé. O mundo bíblico enriquece o conceito teológico da criação como obra proveniente do Ser que nos faz ser. Das experiências religiosas mais ancestrais até o cristianismo, o cuidado pela natureza e a questão socioambiental apareceram como conscientização e práticas concretas. É do que vamos tratar nesta unidade.

1.1. RELIGIÕES ANCESTRAIS E A NATUREZA

Na origem primitiva da experiência religiosa, nos cultos e celebrações individuais e coletivas, os elementos da natureza, sobretudo terra, fogo, água e ar, estiveram presentes. Em  oferendas, cantos e danças os fenômenos naturais, como lua, chuva, raios e trovões são fatos ritualizados. Nas tribos mais primitivas, nos mitos gregos, nos impérios fenício, egípcio e romano, os deuses são a personificação de uma força da natureza. Do encontro entre o natural e a verdade dos preceitos sagrados e morais nascem conceitos, por exemplo: o sol significou a epifania luminosa dos deuses; a lua, a beleza envolvente das deusas.

SAIBA MAIS:

Terra: é o grande símbolo da matéria receptora das forças fecundantes, que de um modo passivo fica à espera da modelagem e das sementes. Espessa, maciça, compacta e de diversas formas e cores é a massa pronta para ser trabalhada e transformada. Como diz Francisco de Assis: “nossa Irmã e Mãe que nos sustenta e governa”. É a gruta e a caverna, a proteção, o abrigo, o subterrâneo que guarda tesouros. É a montanha com força e estabilidade, lugar do encontro com a luz e o céu. É o barro e o pó de onde saímos e para onde voltamos ao seu ventre de Mãe, origem do poder criador.

Fogo: é o elemento da transmutação alquímica, a purificação, fonte da vida, a energia que se libera do interior da matéria. É o sol fonte de toda luminosidade. Do fogo e suas cinzas renasce a vida, muito mais pura e forte, mais bela e perfeita. No fogo se prova o ouro e se prepara o alimento que sustenta os seres humanos. É o sinal da festa e farol dos caminhos. Como diz Francisco de Assis: “belo, jucundo, robusto e forte”.

Água: o grande elemento da mistura, da fusão, da dissolução das partes. É pura receptividade e fluição. Contorna todos os obstáculos à procura do caminho mais perfeito. É ablução e purificação Água do batismo, do dilúvio, da renovação, do sangue, do pacto, a matriz da vida.  Como diz Francisco de Assis: “mui útil, humilde, preciosa e casta”.

Ar: é elemento da liberdade, é a ligeireza, o voo, a elevação, o fim da rotina, o sopro do envio, a flexibilidade, o hálito vital, o respiro nas narinas do ser humano, o movimento que faz o organismo vivente. É o símbolo da Palavra, do Verbo e do ato Criador. Diz Francisco de Assis: “o Irmão vento e o ar, que às suas criaturas dás sustento”.

Uma crença vinda dos simples nativos e camponeses os faz sentirem pequenos e frágeis criaturas diante da grandiosidade do divino. Na Bíblia temos: “Abraão prosseguiu e disse: ‘Sou bem atrevido em falar ao meu Senhor, eu que sou pó e cinza’” (Gn 18,27).

Há uma presença forte do sagrado na totalidade da existência como uma revelação por meio dos elementos da natureza. As religiões ancestrais são plenas de hierofanias; o divino se apresenta em árvores, pedras, rios e fumaça. Objetos materiais que pertencem à ordem do nosso mundo mostram algo que está além do nosso mundo. O natural e o sobrenatural se encontram em um envolvente espaço religioso.

“Uma pedra sagrada nem por isso é menos uma pedra; aparentemente (para sermos mais exatos, de um ponto de vista profano) nada a distingue de todas as demais pedras. Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural. Em outras palavras, para aqueles que têm uma experiência religiosa, toda natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica. O Cosmos, na sua totalidade, pode tornar-se uma hierofania.” (ELIADE, 1992, p. 16)

GLOSSÁRIO

Hierofania: manifestação do sagrado em momentos, tempos e espaços em que se pode perceber as revelações da divindade.

 Religião e evolução são essenciais para elucidar os sentidos presentes em todos os detalhes da vida. Na origem primitiva dos cultos e celebrações individuais e coletivas, os elementos da natureza frequentemente estiveram presentes. Os fenômenos naturais são fatos ritualizados. Das tribos primitivas aos mitos gregos os deuses são personificação das forças da natureza; um encontro entre o natural e sua verdade e os preceitos morais que daí vão nascendo. Profano e sagrado se encontram para habitar na terra dos humanos, e as divindades são as guardiãs da terra. Para entrar no natural é preciso passar pelo portal sagrado.

Todo rito é um rito de passagem. Templos, igrejas e espaços transcendem as obras presentes na criação e usam sinais: flores, ramos, fogo, madeira, pedra, azeite, vinho, frutos, água e tantos outros elementos da natureza para mostrar que há um encontro entre o céu e a terra, o espírito e a matéria.

Todo espaço sagrado implica uma hierofania, uma irrupção do sagrado que tem como resultado destacar um território do meio cósmico que o envolve e torná-lo qualitativamente diferente. Quando em Haran, Jacó viu em sonhos a escada que tocava os céus e pela qual os anjos subiam e desciam, e ouviu o Senhor, que dizia, no cimo: “Eu sou o Eterno, o Deus de Abraão! ”, acordou tomado de temor e gritou: “Quão terrível é este lugar! Em verdade é aqui a casa de Deus: é aqui a Porta dos Céus! ”. Agarrou a pedra que fizera cabeceira, erigiu-a em monumento e verteu azeite sobre ela. A este lugar chamou Betel, que quer dizer “Casa de Deus” (Gn 28, 12-19). O simbolismo implícito na expressão “Porta dos Céus” é rico e complexo: a teofania consagra um lugar pelo próprio fato de torná-lo aberto para o alto, ou seja, comunicante com o céu, ponto paradoxal de passagem de um modo de ser a outro. Não tardaremos a encontrar exemplos ainda mais precisos: santuários que são “Porta dos Deuses” e, portanto, lugares de passagem entre o céu e a terra. ” (ELIADE, 1992, p. 25-26)

GLOSSÁRIO

Teofania: manifestação de Deus em um lugar determinado por meio da natureza, em objetos e em pessoas. É o modo pelo qual se crê na visibilidade de Deus em tempo, circunstâncias e sinais.

As religiões ancestrais inauguraram todos os lugares como espaço sagrado reveladores de um Ser Superior por meio de sinais. As diversas formas e figuras que convocam ao sagrado vêm da natureza como uma seta indicativa de lugar, espaço e tempo que deem segurança e uma orientação necessária. O natural sempre foi um ponto de apoio para o sobrenatural. A realidade dialoga com a inspiração. O lugar passa a ter uma atmosfera sagrada.

A mais antiga experiência religiosa vem do Totemismo. O que é o Totem? É o sinal que reúne a ancestralidade, a genealogia, o clã, as tradições que vão passando de geração em geração com costumes, ritos e símbolos que recolhem seres e coisas sagradas. Vem preferencialmente das tribos indígenas que mostram as crenças totêmicas. Dos indígenas da América do Norte às tribos australianas, na América Latina e na África, que procuram celebrar o espírito bom e livrar-se do espírito do mal. Cada tribo ou grupo familiar fazia do totem o seu brasão de história e fé, que dá ao grupo uma identidade, como que um selo de caráter religioso e cultural. Normalmente, a representação totêmica é cosmológica e abraça o universo conhecido e o mistério do universo não conhecido. São forças materiais e imateriais que se unem. Atinge o indivíduo e os membros do clã.

É a este princípio comum que se dirige, na realidade, o culto. Em outros termos, o Totemismo é a religião, não de tais animais, ou de tais homens, ou de tais imagens, mas de uma espécie de força anônima e impessoal, que se encontra em cada um dos seres, sem se confundir, no entanto, com qualquer deles. Ninguém a possui inteiramente e todos dela participam. Ela é tal forma independente dos súditos particulares em que se encarna que tanto os precede como lhes sobrevive. Os indivíduos morrem; as gerações passam e são substituídas por outras; mas esta força continua sempre atual, viva e semelhante a si mesma. Anima as gerações de hoje como animava as de ontem, como animará as de amanhã. Tomando-se a palavra num sentido bem lato, poder-se-ia dizer ser ela o deus que cada totêmico adora. Apenas é um deus impessoal, sem nome, sem história, imanente no mundo, difuso numa multidão inumerável de coisas presentes na natureza. (DURKHEIM, 1912, p. 269-270)

GLOSSÁRIO

Totem e Totemismo: o Totem é o objeto cultuado como símbolo sagrado de ancestralidade. Significa a herança de força e proteção. Pode ser uma coluna, uma planta ou um animal. O Totemismo é a religião derivada do Totem. Ela faz o encontro, por meio de objetos, entre o ser humano e a natureza, unindo-os pelo sobrenatural.

No totemismo há o conceito do que é proibido; por exemplo, matar certos animais Considerados sagrados, comer em dias consagrados e tocar objetos que são considerados cultuais, antecipando o conceito de sagrado e profano.

Das tribos africanas temos o Animismo, que celebra os espíritos presentes na natureza e os trazem presentes no espírito do ser humano. O animismo revela as forças mágicas presentes na natureza e ritualizadas por meio de objetos de piedade. É um mundo encantado com os fenômenos da natureza e que são atribuídos à atuação divina. As forças da natureza conduzem a uma abstração para uma atuação prática. O animismo criou o Fetichismo, coisas materiais dotadas de força sobrenatural que têm sua própria magia. Trouxe também o Politeísmo, que os gregos já conheciam muito bem: trata-se da intervenção dos deuses em todos os detalhes da vida. Alma e natureza se encontram e precisam celebrar esse encontro em cerimônias religiosas.

Determinados objetos são dotados de poder mágico-afastam a desgraça ou produzem a felicidade: amuletos, feitiços, talismãs. Quase todos adornos com que se compraz a garridice, tanto masculina como a feminina, só se transformam em enfeites após haverem, primeiro[, ] servido de amuletos […]. O Animismo forneceu aos seres humanos uma primeira hipótese que permite estudar o mundo; encorajou os primitivos de outrora, encoraja os primitivos de hoje na tentativa de agir sobre a natureza, que eles acreditam povoada de espíritos análogos aos seus. Pode-se dizer, com Augusto Comte, que ele conseguiu “tirar o espírito humano de seu torpor animal. (CHALLAYE, 1981, p. 37-41)

GLOSSÁRIO

Fetiche e Fetichismo: é adorar e dar valor de modo transcendente e mágico a seres e objetos. Fetiche é o objeto usado para dar satisfação, realização e prazer de uma lembrança de algo muito forte. Fetichismo é o culto organizado de objetos que assumem o lugar de seres espirituais e possuem poder e magia. Animismo: doutrina que mostra que não existe separação entre mundo físico e mundo espiritual, e que animais, plantas, pedras e locais são revestidos de espírito.

No antigo Egito temos a força religiosa de um povo manifestada em seus monumentos, hieróglifos e sarcófagos que descrevem o divino em forma animal e que posteriormente vão adotando formas humanas. O mistério da natureza se une ao mistério humano. Na Índia a religião é totalmente baseada em cultos primitivos, segundo os quais a presença sagrada está nos deuses da natureza. Há o deus da chuva, trovão, tempestade, do céu, das estrelas, que criam uma ordem universal para mostrar a fluência da natureza. Há a força feminina das divindades, evocando a força da mãe terra.

Como diz o Hino número 121 do Livro X, do Rig Veda:

Ele que dá a vida, que dá a força, cuja sombra é a imortalidade, cuja sombra é a morte, quem é este deus que veneramos pelos sacrifícios? Ele por quem existem as montanhas de neve e o mar com o riacho longínquo, ele que tem por braços as regiões do céu… quem é esse Deus que veneramos pelos sacrifícios? Ele que, por seu poderio, passeava os olhos por cima das águas que produzem o poder e engendram o Fogo do Sacrifício, ele que é o único deus acima de todos os deuses… quem é esse deus que veneramos pelos sacrifícios? (CHALLAYE, 1981, p. 35)

O sacrifício, entendido como um fazer sagrado, é o modo como se mantém a força religiosa no mundo, que é feito de imagens muito sensíveis para mostrar a origem suprema de toda realidade. O mundo exterior não é apenas matéria, mas tem uma essência; todos os seres – e sobretudo o corpo humano – precisam ser tomados por um sopro vital.

A minha alma (atman) é no fundo do meu coração, menor que um grão de cevada, menor que a semente de mostarda, menor que um grão de arroz. E o atman é minha alma no fundo do meu coração, mais vasto que a terra, mais vasto que a atmosfera, mais vasto que os céus e todo este mundo infinito. E o atman realmente que é preciso contemplar, que é preciso ouvir, que é preciso compreender, que é preciso meditar; pois verdadeiramente, aquele que ouviu, que compreendeu, que contemplou, que meditou, conhece o universo inteiro. O que está no fundo do homem e o que existe no sol são uma única e mesma coisa. (CHALLAYE, 1981, p. 67)

Muito presente na Índia e na China, o Budismo apresenta uma regra muito importante: não se pode fazer nenhum mal a qualquer ser vivo. O Confucionismo e o Taoísmo, que são religiões da China, o Xintoísmo, do Japão, que contribuição têm quanto à questão da natureza? Todos falam do espírito que estão misturados entre todos os seres existentes e orientam a vida dos vivos. Falam também do espírito da terra, das montanhas, das florestas e das águas. Os cultos ancestrais nessas tradições têm uma conotação materna baseados na Terra Mãe que exerce a sua função de fecundação. A primavera é época dos noivados.

Sem a intervenção de um deus pessoal, a ação dos espíritos e a do céu acordam em recompensar o bem e punir o mal, notadamente por meio de fenômenos da natureza, favoráveis ou desfavoráveis. A abundância dos produtos naturais da terra prova que o soberano cumpriu bem os ritos; os poetas celebram-no com justiça. Ao contrário, a desordem da natureza reflete a desordem do Estado. As leis da natureza confundem-se assim com as leis morais e sociais. É um antropocentrismo ritualista e lírico. (CHALLAYE, 1981, p. 97)

A ordem do mundo é o princípio eterno do qual temos a origem de todas as coisas. Essas religiões todas têm o culto aos mortos. Eles têm influência nos fenômenos naturais. Os mortos povoam a face da terra; são responsáveis pela fecundidade do plantio, interferem no ciclo das estações, estão nas catástrofes, nos tempos de guerra e fome. São fortes no bem e no mal; são bondosos quando os vivos celebram sua memória e muito maus quando são esquecidos; neles está a recompensa e a punição. Os espíritos ancestrais animam a natureza, a beleza do céu, as árvores e as pedras. Por isso, sobre os túmulos se depositam comida e bebida como sinal de reverência e reconhecimento.

Nas religiões do Irã, o Masdeísmo, o Mitraísmo e o Maniqueísmo, o touro, a vaca, o cachorro, o cavalo, a serpente e certos vegetais são sagrados. Deus é o criador majestoso, altíssimo, bom e belo. O Deus da luz, da pureza e da verdade de onde vem o dom da vida. A terra é a muralha que protege o céu. É preciso cuidar e criar de um modo inteligente o gado e as pastagens, e todo agricultor deve ser um bom servidor da vida. Nessas tradições o fogo é o grande símbolo do ser supremo, o culto principal e primordial, o deus da luz.

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Texto originalmente publicado pela USF- FREI VITORIO MAZZUCO FILHO










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