A RIQUEZA DA ICONOGRAFIA FRANCISCANA – 8



O ESPELHO DE CLARA

Um dos ícones mais conhecidos é o Espelho de Clara. Este ícone tem muito a ver com a dimensão contemplativa da vida de Santa Clara de Assis e a mística que envolve a Segunda Ordem. A metáfora do espelho é uma fonte de significados que jorra a partir do mistério que é a imagem. Palavras são limitadas para descrever o espelho, porque ele não se encaixa no círculo das definições por ser uma mina de reflexos; um espelho não se repete pois é sempre uma revelação do instante da imagem.

Quem melhor descreve o espelho é Clarice Lispector: “Em algum lugar do mundo deve haver uma mina de espelhos? Espelho não é coisa criada e sim nascida. Não são precisos muitos para se ter a mina faiscante e sonambúlica: bastam dois, e um reflete o reflexo do que o outro refletiu, num tremor que se transmite em mensagem telegráfica intensa e muda, insistente, liquidez em que se pode mergulhar a mão fascinada e retirá-la escorrendo de reflexos dessa dura água que é o espelho. Como a bola de cristal dos videntes, ele me arrasta para o vazio que para o vidente é o seu campo de meditação, e em mim o campo de silêncios e silêncios. E mal posso falar, de tanto silêncio desdobrado em outros.

Espelho? Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre em frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe. E é coisa mágica: quem tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. Ver-se a si mesmo é extraordinário. Como um gato de dorso arrepiado, arrepio-me diante de mim. Do deserto também voltaria vazia, iluminada e translúcida, e com o mesmo silêncio vibrante de um espelho.

A sua forma não importa: nenhuma forma consegue circunscreve-lo e alterá-lo. Espelho é luz. Um pedaço mínimo de espelho é sempre o espelho todo.

Tire-se a sua moldura ou a linha de seu recortado, e ele cresce assim como água se derrama.

O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho, quem consegue vê-lo vem se ver, quem entende que sua profundidade consiste em ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem- esse alguém então percebeu o seu mistério de coisa. Para isso há de surpreendê-lo quando está sozinho, quando pendurado num quarto vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformá-lo em simples imagem de uma agulha, tão sensível é o espelho na sua qualidade de reflexão levíssima, só a imagem e não o corpo. Corpo da coisa(...).

Não, eu não descrevi o espelho – eu fui ele! E as palavras são elas mesmas, sem tom de discurso(...) Cada um de nós é um símbolo que lida com símbolos – tudo ponto de apenas referência ao real" (Clarice Lispector, Água Viva, Ed. Rocco, RJ, 1998, p. 70-73).

E Clara de Assis diante do Espelho? Toda Dama Nobre no século XIII vivia horas diante do espelho. Devia estar preparada e produzida na beleza do rosto, corpo e vestes, joias e adereços para a chegada de um possível pretendente, escolhido pelo pai para aumentar o patrimônio da família através de um bom casamento e a partir de um dote estipulado em bens, moeda, terra e tesouros. Por viver o espelho na vida real, Clara transpôs o espelho para a experiência espiritual.

CONTINUA

FREI VITORIO MAZZUCO

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