São Luís de França e os Franciscanos - VII
São Domingos e São Francisco de Assis, óleo sobre tela por Angelo Lion. |
Frei Sandro Roberto da
Costa, ofm
2.1
Espiritualidade medieval: movimentos de contestação, franciscanos e dominicanos
Nos séculos XII e XIII, um dos
principais motes dos movimentos de contestação, liderados por leigos, mas também por clérigos, era a dura crítica que
faziam à Igreja e seus membros, principalmente da hierarquia, por sua ligação
com o “século”, o apego às riquezas, a luta pelo poder, seu distanciamento dos fiéis
a quem deviam pastorear, a incapacidade de pregar, seja pelo mal preparo
intelectual, ou pela acomodação em que viviam, ao mesmo tempo em que mantinham os
fiéis distantes da Palavra de Deus[16]. A resposta a esta incapacidade dos membros da Igreja
de proferir uma palavra evangélica de esperança e de coragem à imensa massa dos
fiéis, foram os movimentos alternativos, protagonizados por leigos e clérigos.
Nem sempre ortodoxos, propunham meios para o retorno ao Evangelho, através principalmente
da pregação e de um exemplo de vida pobre e humilde, calcado na vivência do
Evangelho “sine glosa” (ao pé da letra). Alguns destes movimentos descambaram
para a heresia. Consolida-se, aos poucos, a certeza de que o caminho de
santificação não é exclusivo de clérigos, monges e membros da hierarquia, mas
que todos, inclusive homens e mulheres casados, sem renunciar ao seu estado,
também podem encetar a “Sequela Christi”: seguir nu o Cristo nu.
Domingos de Gusmão, com os
dominicanos, e Francisco de Assis, com os franciscanos, constituem, de um certo
modo, o ponto de chegada de todo esse movimento de contestação. “Esses
religiosos de um novo gênero, cujo rápido sucesso é extraordinário em toda a cristandade,
vivem, diferentemente dos monges, entre os homens nas cidades, misturam-se
estreitamente aos leigos e são os grandes difusores das práticas religiosas que
renovam profundamente: a confissão, a crença no Purgatório, a pregação.
Penetram nas consciências e nas casas, entram na intimidade das famílias e dos
indivíduos. Praticam as virtudes fundamentais do cristianismo primitivo em uma
sociedade nova: a pobreza, a humildade, a caridade”[17]. Diferentemente das instituições monásticas
tradicionais, que vivem no isolamento de seus mosteiros, distante do “mundo”, o
espaço urbano, com todas as suas contradições e perigos, é o lugar privilegiado
de atuação dos frades. Não moram em “conventos”, mas em “locus”, casas simples,
em meio às pessoas, que deveriam converter pelo exemplo de vida.
Tendo suas
origens como movimento misto, onde não havia a distinção entre clérigos e
leigos, logo são assimilados pela Igreja e passam a fazer parte da hierarquia e
a servir aos seus projetos de poder. Mas a origem laica e o protagonismo dos
leigos sempre esteve no horizonte do movimento, ao menos como ideal. O melhor exemplo
disto é o próprio Francisco de Assis, que era leigo, sem provas conclusivas de
que teria sido ordenado diácono. Além de criar uma instituição para receber
mulheres (as Damas Pobres ou Clarissas), Francisco também iniciou a Ordem
Terceira, para leigos, homens e mulheres, casados ou não, que não precisavam
“abandonar o mundo”, mas poderiam se santificar permanecendo no seu estado de
vida laica, em família. São Luís é leigo, e seu principal biógrafo também é
leigo. A espiritualidade leiga que começa a avançar no século XIII, e a
santidade, até então apanágio de clérigos e monges, passa a ser possível também
aos leigos. Santificar-se vivendo o Evangelho em fraternidade, pobreza e
penitência, praticado a caridade, anunciando, principalmente pelo exemplo de
vida, a paz e o bem, eram os principais motes dos seguidores de Francisco de
Assis. Luís se insere neste contexto.
[16] O clérigo Jacques de Vitry,
escrevendo em 1216 sobre o movimento franciscano vai comentar, sobre os
clérigos que não desempenhavam a contento sua função de cuidar dos fiéis, que eram
quais “cães mudos, incapazes de ladrar (Is 56,10)”. Fontes Franciscanas e Clarianas, oc., Testemunhos Menores –
Jacques de Vitry, p. 1423.
[17] Le
Goff, Jacques, S. Luís, p.
661-662. Em outra obra, o mesmo autor afirma: “É sabido quanta influência tiveram sobre São Luís os mendicantes, de que
se rodeou”. In Le Goff, Jacques, O maravilhoso e o Cotidiano no Ocidente
Medieval, Edições 70, Lisboa, Portugal 1985, p. 75. Quando da morte de
Luís, existiam na França mais de duzentos conventos franciscanos e mais de cem
dominicanos. Quando voltou da sua primeira cruzada, Luís mandou
construir uma biblioteca na Saint-Chapelle, onde guardava originais dos maiores
escritores eclesiásticos, como Agostinho, Ambrósio, Jerônimo, Gregório, e
outros autores. Quando morreu, estes livros foram deixados em herança aos
frades menores de Paris, aos dominicanos e aos cistercienses de Royaumont. Ele
ajudou ainda sua irmã, Isabel de França, a fundar a abadia das Clarissas de
Longchamps, com o título de Irmãs Menores da Humildade de Nossa Senhora. Luís
conseguiu que seu nome e o de sua mãe fossem incluídos no memento dos vivos em
todos os mosteiros da Ordem Cisterciense da França, bem como dos dominicanos,
dos franciscanos e dos beneditinos de Grandmont.
Continua
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