ECOTEOLOGIA- PARTE 14- UNIDADE 4: A ECOLOGIA INTEGRAL E A ECOTEOLOGIA- 1.1FRANCISCO DE ASSIS E O CÂNTICO DAS CRIATURAS – A MÍSTICA DA UNIÃO CÓSMICA- 1.2 1.2 FRANCISCO DE ASSIS, O PATRONO DA ECOLOGIA
1.1 FRANCISCO DE ASSIS E O CÂNTICO DAS CRIATURAS – A MÍSTICA DA UNIÃO CÓSMICA
Altíssimo, onipotente, bom Senhor, teus são o louvor, a glória e a honra e toda a bênção (cf. Ap 4,9.11). Somente a ti, ó Altíssimo, eles convêm, e homem algum é digno de mencionar-te. Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas (cf. Tb 8,7), especialmente o Senhor Irmão Sol, o qual é dia, e por ele nos iluminas. E ele é belo e radiante com grande esplendor, de ti, Altíssimo, traz o significado. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã lua e pelas estrelas (cf. Sl 148,3), no céu as formaste claras e preciosas e belas. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento, e pelo ar e pelas nuvens e pelo sereno e por todo tempo, pelo qual às tuas criaturas dás sustento. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água (cf. Sl 148,4.5), que é muito útil e humilde e preciosa e casta. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo (cf. Dn 3,66), pelo qual iluminas a noite (cf. Sl 77,14), e ele é belo e agradável e robusto e forte. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa, a mãe terra (cf. Dn 3,74) que nos sustenta e governa e produz diversos frutos com coloridas flores e ervas (cf. Sl 103, 13.14). Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que perdoam (cf. Mt 6,12) pelo teu amor, e suportam enfermidade e tribulação. Bem-aventurados aqueles que as suportarem em paz, porque por ti, Altíssimo, serão coroados. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa, a morte corporal, da qual nenhum homem vivente pode escapar. Ai daqueles que morrerem em pecado mortal: bem-aventurados os que ela encontrar na tua santíssima vontade, porque a morte segunda (cf. Ap 2,11;20,6) não lhes fará mal! Louvai e bendizei ao meu Senhor (cf. Dn 3,85), e rendei-lhe graças e servi-o com grande humildade. (Cnt)
O Cântico das Criaturas de São Francisco – ou Cântico do Sol – revela-nos as experiências maravilhosas da vida de Francisco com Deus. Nesse escrito, somos instigados a refletir acerca de que o homem deve ter os olhos abertos para a complexidade de tudo o que cerca. Faz-se necessário, assim, a decisão madura, responsável e fundamental de querer a aprendizagem do mergulho religioso na realidade.
Isso posto, somos levados a questionar se, neste mundo segmentarizado, tecnicista, secularizado, opaco, ver a presença a presença de Deus. Afinal, Ele está em toda a parte e presente em todas as coisas e precisamos aprender a vê-Lo em tudo.
Em o Cântico das Criaturas, notamos que Francisco se alinha aos salmistas, santos e cantores bíblicos para exaltar e cantar à natureza e seus elementos. A originalidade de seu Cântico corresponde no simples e singular modo de conceber e valorizar as coisas.
Assim, em seu escrito, Francisco, amparado na ordem cosmológica (os 4 elementos: terra, água, fogo e ar e o geocentrismo da cosmologia antiga) e na ordem profunda da psique, aponta que, enquanto os elementos subjetivos (sol, lua, estrela etc.) exprimem uma mística vibração, eles formam também uma língua com a qual quer se exprimir a união religioso-cósmica de Deus com tudo. O hino, então, simboliza o fim do itinerário espiritual longo de São Francisco de Assim, após vinte anos de sua conversão.
SAIBA MAIS
Conheça, na íntegra, a letra do Cântico das Criaturas disponibilizada pela Organização Franciscanos, no link: Disponível em: https://franciscanos.org.br/carisma/simbolos/o-cantico-das-criaturas#- gsc.tab=0. Acesso em: 25 ago. 2021.
Foi então que aconteceu o evento de doçura. De volta ao Monte Alverne, nos extremos da fraqueza e da perda das forças, Francisco se detém em São Damião, onde vivia Santa Clara e suas Irmãs. Exatamente na igreja, na qual o Senhor lhe falara e lhe pedira para reconstruir a sua casa em ruínas. Os sofrimentos não lhe davam tréguas.
Por cinquenta dias ou mais, o bem-aventurado Francisco não podia ver a luz do sol de dia nem ver a luz do fogo de noite [...] tinha também grandes dores nos olhos de dia e de noite, de modo que de noite quase não podia descansar e dormir. (CA 83, 8.9)
Uma noite não podendo mais suportar as dores, S. Francisco, em uma atitude de profunda simpatia não só com as coisas, teve grande piedade e pena de si mesmo e disse ao Senhor: “Senhor, vinde em meu auxilio em minhas enfermidades, para que eu as possa tolerar com paciência” (CA 83, 13). Segundo Celano, travou-se uma luta em São Francisco para vencer as dores e a impaciência, orando entrou em agonia. No decurso de tamanha agonia ouve em espírito uma voz que lhe diz:
Dize-me, irmão: se alguém por estas tuas enfermidades e tribulações te desse um tesouro tão grande e precioso que, se toda a terra fosse ouro puro, todas as pedras fossem pedras preciosas e toda a água fosse bálsamo, tu porém considerarias e terias tudo isto como nada como se fossem [apenas] matéria: terra, pedras e água em comparação (cf. Sb 7,9; Sl 18,11) com tão grande e precioso tesouro que te seria dado, por acaso não te alegrarias muito?" E respondeu o bem-aventurado Francisco: "Senhor, este tesouro seria grande, e investigável, extremamente precioso e demasiadamente amável e desejável" (cf. Sl 18,11). E disse-lhe: "Portanto, irmão, alegra-te e rejubila-te bastante em tuas enfermidades e tribulações, porque doravante deves considerar-te tão seguro como se estivesses em meu reino. (CA 83, 14-18)
SAIBA MAIS
Conheça, na íntegra, a intepretação que o Frei Vitório Mazzuco escreve, em “A mística de são Francisco de Assis”, inspirado no momento de escrita da Cântico das Criaturas, sobre a alegria que o invadiu.
Disponível em: https://ofsabaete.blogspot.com/2013/10/a-mistica-de-sao-francisco-de--assis-12.html. Acesso em: 25 ago. 2021.
Como símbolos do mundo interior, os elementos cósmicos são celebrados, pois as coisas são como invólucro de um profundo discurso, porém, que não se resume na alegorização dos elementos, pois a água continua sendo água, a Lua permanece Lua e o Sol, Sol. Contudo, tais elementos carregam em si, para além de seus valores objetivos, valores simbólicos que auxiliam ao Santo exprimir seu mundo interior, em que tudo é luminoso e está em fraternidade universal serena. Mazzuco (2015, [n. p.]) reitera que
[o]s elementos referidos por Francisco e pelos quais canta o Criador não são simplesmente elementos. Ele os qualifica, dá-lhes adjetivos que expressam a vivência interior que possuía. O sol é radiante e com grande esplendor. O fogo é radiante e robusto, forte e jucundo; água é humilde, preciosa e casta e assim por diante. Esses adjetivos qualificam os elementos. Mais que os elementos qualificam a alma. Nem sempre é verdade que o sol é radiante e de grande esplendor. Ele pode queimar e matar as plantações. Nem sempre a água é humilde, preciosa e casta. A água convulsa do oceano pode matar. A água poluída pode contaminar. O fogo pode queimar e seus danos são irreparáveis.
Para Francisco, os elementos falam através desses adjetivos, pois “[t]oda paisagem é um estado de alma” (BACHELARD, 1978, p. 57), e esta, por sua vez, tem uma experiência. Assim, Francisco sentiria dentro de si a grandiosidade da união com Deus. Limpara, depois de anos de penitência, os olhos para Deus e para as profundezas das coisas, o que o permitia ver Deus em todas as coisas. Essa foi uma conquista longa e dificultosa.
Daí o mundo se transfigurar e tornar-se, para ele, um grande sacramento. Tudo falava de Deus: desde o vermezinho da estrada até o Sol. Quando Francisco chama as coisas de preciosas, para ele essa palavra preciosa não constitui uma grandeza mensurável, um valor como um tesouro, mas exprime a riqueza misteriosa, que não mais pertence ao domínio do ter, mas da realidade do Ser. É a expressão de sua experiência religiosa e sacra que lhe permite ver a sacralidade e a transparência divina do cosmos.
O canto de São Francisco não é um canto romântico. Não canta numinosidade das coisas enquanto coisas, pois ela vem da alma ligada a Deus e a Cristo. Por isso, o canto significa o termo de um longo itinerário espiritual. Quando lhe caíram as escamas dos olhos, então, podia ver Cristo e Deus e entoar o hino da casa paterna, onde todos são irmãos e irmãs, a Terra e o Sol, o fogo e a morte. As coisas ficam coisas, mas isso não esgota a sua realidade.
Elas são símbolos que também expressam a alma. O Universo interior se exprime no universo exterior. Então, tudo começa a falar, a fala do mistério e de Deus.
O surpreendente do cântico é o modo familiar com que Francisco descreve as diferentes realidades cósmicas. O fato podermos chamar a realidade sub-humana de irmão e irmã nos coloca diante de uma maneira diferente de ver o mundo do que aquela, por exemplo, científica. Para a ciência, as coisas são coisas, destituídas de qualquer grandeza humana e numinosidade, porque são nada mais que objetos de nossa conquista e de exercício de nossa vontade de poder. Falta, com isso, o respeito e a grandiosidade do sentir-se junto, dentro de uma mesma casa paterna.
Já em Francisco, as coisas se revestem de grande simpatia. Não havia poesia nisso, as queria dizer a verdadeira realidade das coisas. A realidade profunda das coisas reside no poder estarem todas na casa comum do Pai. Deus é essencialmente Pai.
Dizer que Deus é Pai, não era para Francisco uma doutrina, um dogma teológico, mas sim uma experiência afetiva e estética profunda. Ser irmão e irmã não significa apenas uma verdade intelectual, mas uma verdade psicológica, traduzindo, desse modo, uma verdadeira emoção amorosa, uma fusão afetiva cósmica.
Essa declaração franciscana de irmão e irmã é uma confissão de intimidade e de consanguinidade com as coisas todas, todos estão na casa paterna de Deus. Por isso podemos nos irmanar. Não somos inimigos. Nada nos ameaça. Estamos na atmosfera do aconchego e do carinho dos irmãos e das irmãs. Isso é o ser profundo em tudo.
Francisco de Assis defende que os elementos: “levam de ti, Altíssimo, o sinal”, isso porque ele é muito sensível aos símbolos. Celano conta como Francisco tinha respeito para com a luz e o fogo, símbolos da Luz Eterna. Por isso, deixava arder as lanternas, as lâmpadas e as velas. Caminhava com veneração sobre as pedras, com respeito. Aquele que foi chamado de Pedra. Os elementos do Cântico ao Senhor Irmão Sol são a expressão dessa vivência interior e sacra.
Uma das coisas mais características no Cântico é o feminino e o masculino, que surgem como símbolos da unidade e da totalidade psíquica do humano. Basta observarmos o binômio masculino e feminino: irmão Sol; irmã Lua e estrelas; irmão vento; irmã água; irmão fogo e irmã terra.
Esse casal cósmico não é constituído arbitrariamente. São combinações do inconsciente em busca de uma unidade radical religioso-cósmica. É uma linguagem que exprime esse afã humano. Um outro elemento ressalta claramente isso: O irmão e senhor Sol e a irmã- mãe Terra. O Sol é símbolo da virilidade e paternidade, do elemento germinador e fecundante. A Terra, nossa Mãe, é por excelência o símbolo da vida, da fecundação que sustenta e nutre todos os viventes. Todos os demais elementos são encerrados dentro destes dois, da paternidade e da maternidade.
O Cântico das Criaturas foi composto no outono de 1225 e contém duas estrofes que foram acrescentadas posteriormente. Sua penúltima estrofe, escrita em julho de 1226, celebra o perdão e a paz alcançados pelo santo que mediou uma rixa entre o prefeito e o bispo de Assis. E a última estrofe celebra nossa irmã a morte corporal e foi inspirada pouco antes do trânsito de São Francisco, nos primeiros dias de outubro de 1226.
Elas se destacam do hino, em que não mais o cosmos que é cantado, mas o cosmos humano, inserido dentro da fraternidade cósmica. É uma fraternidade conquistada entre tensões e sofrimentos, graças a um amor que supera o ódio e a angústia da morte. São Francisco quis acrescentá-las ao canto. Elas, na verdade, fazem-lhe parte e se originam da mesma inspiração fundamental.
O hino, então, quer cantar e comemorar a união mística de tudo com Deus. Como não podia deixar o humano fora, na sua tribulação, o hino se abre ao mundo humano, estigmatizado por conflitos e pela angústia da morte. O mundo cósmico não seria totalmente reconciliado no matrimônio universal se não inserisse o mundo humano. O humano se concilia com o outro humano e, ainda, reconcilia-se com a morte, aceitando a sua existência mortal. Integra, assim, a morte à vida. Aceita-a não como uma bruxa má, mas como a irmã que nos introduz na casa da Vida e do Amor.
Quanto à estrutura do Cântico, convém ainda notarmos que nele se cruzam as duas linhas a horizontal e a vertical. Começa com a vertical: “Altíssimo e bom Senhor! ”. Altíssimo é a expressão do Voo do Espírito para o Alto. Aqui se resume a grande experiência de Francisco. “E ninguém é digno de mencionar teu nome”. Esta expressão exprime a pobreza total de nossas palavras frente ao Altíssimo. Nenhum louvor, nada pode exprimir o mistério de Deus. São Francisco o sabe, não por um saber teológico, mas por uma experiência total, vital, afetiva.
Não podendo cantar o Altíssimo volta-se às criaturas: “Louvado sejas, meu Senhor, por todas as tuas criaturas! ” Renuncia à Transcendência, mas canta o mundo a partir da Transcendência. O universo visível será o caminho para o Sacro, para o Totalmente Outro, porque “de ti, Altíssimo, porta o Teu sinal”. Portanto o movimento inicial era totalmente vertical: cantar Deus.
Em seguida, ele se reduplica e se volta às criaturas, abre-se para a fraternidade universal conquistada pela experiência do verticalismo, da mesma filiação divina. Indigno de sequer nomear o nome de Deus, sente-se na mesma filiação, na mesma pobreza criacional de todas as coisas. Ele começa do Alto, Deus, desce para os elementos mais preciosos, o sol, depois desce aos mais humildes, como o vento, a água, e acaba na mãe terra. O canto termina com a frase expressiva, no coração do mundo: “Louvai e bendizei ao meu Senhor e rendei-lhe graças e servi-o com grande humildade!”. Ele canta as criaturas porque elas são para Francisco carregadas de valor simbólico do Altíssimo.
O Cântico é, primeiro, uma vivência interior de Deus que se extravasa no exterior, sobre o cosmos. Estando largamente disponível aos apelos do Altíssimo, ao mais Alto dos céus, aceita a comunhão fraterna com a nossa terra, que nos sustenta e governa. Esse caminho de grande humildade e de comunhão fraterna se transforma em um caminho de profunda reconciliação com tudo, até com a morte. Com isso, alcança a máxima libertação, integrando tudo dentro da vida, inclusive a morte.
E Francisco conseguiu essa profunda reconciliação, porque ele comove e seduz toda a humanidade. O esplendor do humano e sua tragédia, sua ânsia de ascensão e seu enraizamento na terra, sua dimensão urânica (céu) e a sua dimensão telúrica (terra) encontram nele um intérprete privilegiado.
"Altíssimo, onipotente, bom Senhor, teus são o louvor, a glória e a honra e toda a bênção. Somente a ti, ó Altíssimo, eles convêm, e homem algum é digno de mencionar-te” (Cnt). Essa primeira estrofe é o hino do silêncio diante do mistério inefável. O Altíssimo atrai todas as energias do louvor e da adoração. Só Ele é digno de todos os títulos. Por isso é o Bem Total, o Sumo Bem, Todo Bem.
Francisco despojou-se não só de seus bens, mas também da vaidade pessoal, dessa terrível vaidade farisaica que torna as pessoas virtuosas (não confundir com santas), pequenos tiranos, senhores e deuses para si próprios e para os outros. Por isso ele defende aqui que de Deus são os louvores, a glória, a honra e todo o bendizer. Estaríamos inclinados a pensar que é o humano que louva e dá glória e honra a Deus. Então não sou eu que louvo e honro, mas é Deus que louva e honra em mim e através de mim. Em vista disso, conseguimos compreender o que leva São Francisco a prescrever aos Irmãos na primeira Regra, o seguinte pedido:
Por isso, na caridade que é Deus (cf. 1Jo 4,16), suplico a todos os meus irmãos que pregam, que rezam e que trabalham, tanto aos clérigos quanto aos leigos, que se esforcem por humilhar-se em tudo e por não se gloriar nem se regozijar consigo mesmos nem se exaltar interiormente das boas palavras e obras, e menos ainda, de nenhum bem que Deus muitas vezes faz ou diz e opera neles e por eles, segundo o que diz o Senhor. (RnB XVII, 5-6)
Sabemos da psicologia de São Francisco, ardente e fogosa, que ele queria o que queria, com grande paixão e profundidade. Como jovem nutria uma paixão imensa, queria ser grande e ser conhecido no mundo. Sonhava em se tornar um grande cavaleiro, um príncipe. Depois, sua ambição se espiritualizou, mas não permaneceu menos ambiciosa a Vida Secunda, narra Celano, que um dia Francisco, já convertido, pergunta aos irmãos: “De que coisa pensais vós que eu mais me alegro?” e ele mesmo responde:“Serei venerado como santo por todo o mundo”. Ao longo da vida, contudo, ele foi redescobrindo cada vez mais o mistério de Deus. A palavra Altíssimo e ninguém é digno de mencionar teu nome, revela sua alma não mais possessiva e ambiciosa. Não renuncia ao Altíssimo, renuncia à posse do Altíssimo.
Na primeira estrofe, o Cântico das Criaturas revela duas tanto a paixão de Francisco para o alto, como também para o mistério. Mas essa paixão é livre de toda ambiguidade, purificada de todo o desejo de poder e vontade possessiva. Está nu e pobre diante de Deus.
Só Deus é Deus. Só Deus pode falar a linguagem do divino. E Francisco deixa Deus ser Deus, sem querer enquadrá-Lo dentro de categorias humanas. Abre então outro caminho, o caminho da humildade, da encarnação nas criaturas.
Diante do inefável, deve-se imperar o silêncio. Mas como o humano não é pedra, ele fala. Seu falar, contudo, a partir do Inefável e Altíssimo, deverá desembocar de onde veio: do Altíssimo. Mas tem-se que, ao falar, deixar o mistério falar através de sua fala. São Francisco fala das criaturas. Canta, contudo, de uma forma que elas falem sempre do Inefável, do Altíssimo do qual são sinais. O verso “Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas” mostra a transição do silêncio para a fala que deve articular o silêncio.
Para São Francisco, todas as criaturas, como expressa o hino, são o lugar da revelação do Altíssimo. O mundo material tem valor e, por isso, não perde sua dignidade, embora o Altíssimo exceda infinitamente. Como ele não quer cantar sozinho, ele canta com as criaturas. À vista disso, notamos o espírito não possessivo de São Francisco. Não é ele que canta por nem através das criaturas. Elas já cantam por si só. Ele se une a elas e louvar. Irmana-se e confraterniza-se.
Celano frisa que “[...] nunca se viu tanto afeto para com todas as criaturas” (1Cel 80). E continua:
[e]nfim, chamava todas as criaturas com o nome de irmãos e, de maneira eminente e não experimentada por outros, percebia com agudeza as coisas ocultas do coração das criaturas, como quem já tivesse alcançado a liberdade gloriosa dos filhos de Deus. (1Cel 81)
Na literatura provençal, a qual Francisco admirava, descobria a canção do encantamento pela dama e a efusão emotiva do amor. Francisco soube depurar essa corrente que o influenciou tanto, de todo o peso, de toda a ligação nervosa com a terra e com a Dama, para conservar-lhe o ritmo essencial que incluía a canção até a morte e o sofrimento.
Sua relação profundamente humana com Clara, mostra a maravilha como ele integrou o feminino e o encantamento do amor. O eros foi libertado de todo o peso e transformado em gape, sem perder toda sua profundidade psicológica. Isso nos ajuda a compreender aexpressão cantar com todas as criaturas. O cantar “com grande humildade” alude à superação de todo o ressentimento contra nossa arqueologia. Une-se com o cosmos, com o mais baixo até o mais alto, para juntos cantarem o Inefável.
A celebração do Sol: “Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente o senhor irmão sol, pois ele é dia e nos ilumina por si. E traz de ti, Altíssimo, o sinal”. Cantar o Sol é um tópos comum da poesia e de todo hinário religioso cristão e pagão.
Nesse sentido, Francisco se insere em uma experiência comum que o transcende. O Speculum Perfectionis nos informa que Francisco considerava o Sol o mais belo de todas as criaturas e de forma melhor recordava Nosso Senhor Jesus Cristo e Deus, chamado pela Escritura de Sol da Justiça (1EP 119). No Sol, Francisco via o sinal de Deus e, por isso, ele o entendia como um convite permanente para a memória do divino.
De manhã, ao nascer o Sol, cada homem deve louvar a Deus que criou o Sol para nossa utilidade, pois é por ele que nossos olhos possuem a luz (1EP 119). Ele, mesmo cego – de uma cegueira de que foi tomado depois de uma viagem pelo oriente –, não deixava de cantar ao irmão Sol e guardava sua luz interior e sua força evocadora.
O senhor irmão Sol não é uma imagem material, guardada no interior, mas ela emerge das profundezas da alma, e aponta para algo mais sublime. Para descobrir algo de mais sublime precisamos penetrar um pouco mais na intimidade do elemento. Primeiramente, o sol é saudado como fonte de luz: dele vem o dia, é belo, radiante, cheio de esplendor. Ele é chamado de senhor, por participar da nobreza do mundo. Ele é senhor. Senhor era uma expressão que Francisco reservava para Deus e Jesus Cristo.
Começa com o elemento masculino e encerra com o elemento feminino. Esse casal é uma imagem mística antiga. Nos cultos solares das religiões arcaicas, o sol é considerado como elemento masculino, como o grande Senhor, esposo da terra. Da união de ambos é que nasce a vida, e todas as coisas.
O sol é símbolo do Altíssimo e, ao mesmo tempo, fraterno. Um sol ao mesmo tempo sacro e íntimo. O sol é a expressão de uma plenitude interior, que irmana todas as coisas, penetra tudo, ilumina tudo, desde as montanhas até o último cisco da estrada, desde o homem até o verme, é por excelência o símbolo da grandeza de Deus. Sem se macular ele reluz no esterco, sem se orgulhar, espelha-se nas águas. Conserva sua identidade suprema.
A nossa irmã terra, a nossa irmã e mãe terra: “Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã e mãe terra, que nos alimenta e governa e produz variados frutos e coloridas flores e ervas”. O humano tem a experiência da terra como mãe, com capacidade maternal inexaurível de todos os frutos. Ela nos “sustenta e governa” como a mãe sustenta e governa a criança: produz variados frutos, expressa o verso. Francisco nomeia ervas e flores. Ela não se contenta em nutrir os filhos, mas como mãe bondosa ela nos enche de beleza: os verdes e as flores são a festa da terra mãe; são a alegria dos olhos e da alma, formam o reino da beleza e da graça; constituem o sorriso da terra na extensão do cosmos. São Francisco dava tanta importância ao verde e às flores (2Cel 165). Isso é um símbolo de sua fineza de alma e sensibilidade poética e estética.
Ele chama a terra de mãe e de irmã e confere à terra uma nova dimensão. Ela é mãe, sim, porque nos sustenta, mas não é fonte absoluta da vida. Por si só é uma criatura e, por isso, é como as demais realidades cósmicas. E por isso irmã, que depende, como cada um de nós, do mesmo Altíssimo Pai.
A terra em Francisco ocupou o lugar privilegiado como expressão simbólica. Basta ver os lugares nos quais se situam os conventos no vale de Rieti, do La Verna, em Assis: sempre os mais soberbos, onde as paisagens eram mais luxuriantes e evocadoras. Sua experiência mística foi desenvolvida em contato com a terra. Primeiro nas cavernas, onde, depois de sua conversão em Assis, retirava-se com frequência para uma caverna próxima, em que dizia, respondendo aos amigos, ter encontrado um rico tesouro.
Em seguida, em Poggio Bustone, no vale de Rieti, e no La Verna. O mundo e o universo da caverna são o universo interior, profundo, cheio de sombras e ressonâncias. A caverna é símbolo materno. Assim, entrar na caverna para se encontrar é entrar no ventre materno. Habitar na caverna é participar na vida da terra, no seio da mesma mãe terra. Na caverna, o humano está em sua profundidade e em sua unidade radical.
Sua relação profunda com a terra se exprimiu de forma exemplar quando Francisco estava moribundo. Queria morrer nu sobre a terra. Celano conta que, quando Francisco estava para morrer, chamava todas as criaturas para o louvor de Deus, exortando-as ao divino amor com os versos que havia composto. E aos Irmãos dizia:
Quando virdes que cheguei ao fim, como me vistes nu anteontem, assim colocai-me sobre a terra e deixai- me jazer deste modo, já defunto, por tão longo espaço de tempo que alguém poderia percorrer devagar a extensão de uma milha. (2Cel 217)
O ato de deitar-se nu sobre a terra pode exprimir o seu grau de pobreza, de nudez diante de Deus, como Cristo na Cruz, nu distendido no madeiro. O gesto possui, certamente, um significado mais profundo: significa a união e a adesão à nossa mãe e irmã terra.
O Cântico das Criaturas é o hino que celebra a reconciliação paradisíaca do humano com a totalidade de suas relações com Deus, o Inefável, com o cosmos, com seu irmão e irmã, com os outros na paz fraterna e com a morte aceita como irmã. Há no hino um apelo total à confraternização.
O que aparece no Hino é o problema humano, sempre antigo e sempre atual do humano buscando a unidade de todas as coisas, mesmo com as realidades mais dramáticas como a morte. E se entoa então o hino de louvor. O humano de hoje dificilmente canta as coisas. Ele canta a si mesmo a propósito das coisas. Não deixa as coisas serem coisas, e faz delas um prolongamento do humano e de sua subjetividade que procura conquistar e poder.
O Cântico das Criaturas mostra que a unidade não pode ser constituída sem uma comunhão cósmica, sem uma comunhão com as raízes cósmicas de nossa vida interior e exterior. Tudo deve ser um crescimento total, porque tudo deve desabrochar no louvor de Deus.
O humano moderno está condenado – e isso funda sua fatalidade – a dominar a natureza. Deve combater as doenças e organizar a satisfação de suas necessidades fundamentais. Mas deve ter o cuidado, porque, uma coisa é cultivar a terra e experimentar como ela é mãe generosa, outra é a destruição do solo sem respeito e veneração.
A visão franciscana procura respeitar as coisas sem deixar que elas fiquem outra coisa que coisas. Mas procura ouvir a canção essencial que cada coisa entoa para Deus. E tenta, bem ou mal, unir-se nessa Canção perene ao Criador.
1.2 FRANCISCO DE ASSIS, O PATRONO DA ECOLOGIA
A proclamação de São Francisco de Assis como Patrono da Ecologia mostra que a religião não é displicente no que se refere às questões ambientais. Não pode existir uma força espiritual desvinculada da terra. Logo, não podemos assumir que ecologistas não possuam uma mística e não queiram se aproximar das grandes religiões e dialogar com elas sobre o compromisso de preservar a natureza.
São Francisco de Assis tem bilhete de entrada em todas as religiões quanto ao seu modo de interagir com tudo e todos. Com a Carta Apostólica Inter Sanctos, o Papa São João Paulo II, proclama Francisco de Assis o celeste padroeiro dos cultores da Ecologia,
[e]ntre os santos e preclaros varões que respeitaram a natureza como maravilhoso presente que Deus fez ao gênero humano, figura merecidamente São Francisco de Assis. Pois com sensibilidade singular ele apreciava todas as obras do Criador e, como que divinamente inspirado, criou este admirável “Cântico das Criaturas”, as quais, o irmão sol sobretudo, e a irmã lua como as estrelas do céu lhe davam ensejo de render devidamente louvor, glória, honra e toda a benção ao altíssimo, onipotente e bom Senhor. Estava, pois, muito bem avisado o nosso venerável Irmão Sílvio Oddi, Cardeal da Santa Romana Igreja e Prefeito da Sagrada Congregação para os Clérigos, quando, fazendo-se porta-voz principalmente dos membros da Associação Internacional chamada “Planning environmental and ecologycal Institute for quality life”, pediu a esta Sé Apostólica que São Francisco de Assis fosse declarado padroeiro junto de Deus daqueles que se empenham pela Ecologia. E nós, de acordo com a Sagrada Congregação para os Sacramentos e o Culto Divino, em virtude destas Letras, válidas para todo o sempre, proclamamos São Francisco de Assis, padroeiro celestial de todos os cultores da Ecologia, com todas as honras e respectivos privilégios litúrgicos. (JOÃO PAULO II, 1979, [n. p.])
A figura de São Francisco descentraliza, em parte, a religião do antropocentrismo e abraça a natureza, não como domínio, mas como convivência. Francisco de Assis mostra um caminho alternativo, um jeito cristão de voltar às raízes da criação. A sua visão de pobreza como partilha, e de ter tudo em comum, ajuda a conscientizar os abusos da degradação e do desperdício. Francisco se faz pequeno, um Menor entre os mínimos, e tira a onipotência dos que querem dominar a terra.
Se há crítica às religiões, há uma unanimidade quanto a Francisco. José Antônio Merino (2007, p. 49) expõe que, em surgiram, em defesa da mensagem bíblia como “promotora egrégia da causa ambiental”, após os ataques de cientistas à religião judaico-cristã. O autor frisa que
[a]s igrejas cristãs tomaram-no tanto a sério que celebraram magnas assembleias nacionais e internacionais para debater o problema ecológico. A partir da década de setenta até hoje, tanto as igrejas cristãs particulares como as assembleias ecumênicas internacionais têm-se reunido todos os anos, ou cada dois anos, para analisar o grande problema ambiental e suas causas, e assim poderem oferecer uma resposta simultaneamente religiosa e científica, pois participavam cristãos nas ditas reuniões. Aqui, sobressaia frequentemente Francisco de Assis como modelo a seguir para a educação do ser humano no seu comportamento com a natureza, nestas assembleias, Francisco emergia como cristão modelar relativamente aos problemas ambientais. (MERINO, 2007, p. 49)
De tais encontros, surgiu, em 1989, declarações no Documento Final da Assembleia Ecumênica de Basileia em defesa do meio ambiente, em que as taxas de fome, degradação ecológica, em virtude das condições de vida precária, insegura e insuportável em que vive uma grande parcela da população mundial. Merino (2007, p. 51) sublinha que, em vista de tais perspectivas, os responsáveis pelas situações ecológicas negativas atuais devem se conscientizar e se responsabilizarem, investindo nos três princípios da ecologia: (1) “[...] salvar o que pode ser salvo” (2) “[...] travar os efeitos nefastos que se estão a verificar e impedir que apareçam outros” e, por fim, mas não menos importante, (3) “[...] reconstruir ecologicamente os elementos do meio ambiente prejudicados ou destruídos”.
Mais um texto da Assembleia Ecumênica de Seul de 1990:
A resistência à desintegração da criação deve converter-se na prioridade universal da nossa época. É um desafio que não tem antecedentes históricos, pois a humanidade e a ecos-fera converteram-se agora em uma comunidade de sobrevivência interdependente. Está em jogo o próprio futuro da vida. É necessário estabelecer uma ordem ecológica internacional, se quisermos ter futuro. Exortam-se os cristãos a trabalhar para conseguir esta ordem e a examinar de novo o seu pacto com o Criador e cuidador de toda criação. (MERINO, 2007, p. 51
SAIBA MAIS
Em complemento ao exposto até aqui sobre as posturas de conscientização orientadas para, de certa forma, reparar os danos causados a nossa mãe terra, indicamos a leitura das páginas 51 a 53 do livro São Francisco e a Ecologia, escrito por Merino, em 2007, nas quais o autor não só descreve a relação da igreja com a ecologia, mas também salienta a postura exemplar de respeito e compaixão de Francisco de Assis com a natureza.
Merino (2007, p. 53) também postula que “Francisco não é uma teoria sobre o mundo, é uma utopia no mundo. Não uma simples recordação, mas uma provocação que põe em causa a consciência que vive segundo os imperativos habituais de uma ética de consumismo, do usar e jogar fora. A sua arte de viver e de estar no mundo e com as coisas é o convite a criar um diálogo universal para além dos pressupostos científicos e antropológicos da subjetividade e da objetividade, do externalismo e do internalismo, do materialismo e do espiritualismo”.
Fonte: MERINO, J. A. São Francisco e a Ecologia. Braga: Editorial Franciscana, 2007.
Texto originalmente publicado pela USF- FREI VITORIO MAZZUCO FILHO
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